sábado, 27 de agosto de 2016

Pensamento, Conhecimento e Linguagem

A Filosofia é um saber e, como tal, um tipo de conhecimento sobre as coisas de seu campo de estudo. O campo de estudo da Filosofia exclui, segundo a tradição, a referência à experimentação, à observação ou a práticas sensoriais para a verificação de suas proposições. Ela não é um saber empírico. Ela não tem um objeto empiricamente determinado, como as demais ciências. Essa concepção, naturalmente, sobreleva alguns assuntos que tradicionalmente foram de sua alçada, como, por exemplo, a metafísica, a teodicéia, a cosmologia racional, etc. Daí não ser ela propriamente uma ciência. Este foi sempre um problema, pois se ela não tem um objeto empírico, qual seria seu objeto? Se o seu objeto é a totalidade universal e o absoluto (e, portanto, o necessário "a priori"),  estes conceitos por certo não podem ser hauridos da experiência que sempre diz respeito aos objetos ou fatos particulares, relativos e contingentes, fatos acessíveis aos sentidos. É muito comum fazer referência ao objeto da Filosofia como algo que está fora da experiência possível, e isto a identifica com o pensamento metafísico, isto é, com o pensamento que não pode ser conferido pela experiência sensível.
A Lógica e a Teoria do Conhecimento (Gnosiologia) foram também consideradas como pertencentes ao campo da Filosofia. Entretanto, estas últimas disciplinas parecem guardar uma certa relação com o mundo da experiência, da experiência de pensar corretamente, das práticas da justificação ou das relações de validade material do conhecimento, enquanto possibilidade, origem, limites e natureza da cognição.
Nesse sentido, e por outras razões, uma larga faixa de pensadores crêem não haver propriamente um objeto da Filosofia, pois ela é uma atitude perante o mundo é não um conhecimento efetivo de objetos empíricos do mundo, como precisamente ocorre com as ciências da natureza ou com as ciências humanas. Outros pensadores acreditam ser a Filosofia um exercício crítico a respeito do conhecimento humano, especialmente em relação à forma de manifestação desse conhecimento, isto é, através da linguagem. Assim, segundo a corrente analítica, por exemplo, a Filosofia seria o mexercício de análise crítica das condições de possibilidade da linguagem para dizer o mundo,  cientificamente ou não. Então, a Filosofia tem como objeto de seu estudo e análise o conhecimento humano expresso na linguagem, pondo em relevo, de modo crítico, aquilo que pode ser dito com sentido e coerência. Porém, sendo ela um saber crítico sobre a forma de manifestar-se um outro saber (científico ou ordinário), também ela deve se manifestar sob a forma de uma linguagem.
Seria, pois, um tipo de conhecimento ou um tipo de saber: um conhecimento sobre a forma pela qual ele mesmo, como conhecimento, se manifesta para falar sobre o mundo. Assim, a Filosofia seria uma espécie de metalinguagem, uma linguagem crítica sobre a linguagem ordinária ou científica. Fica contudo a questão de saber se a Filosofia pode ser ela mesma, como meta-linguagem, objeto de outra linguagem. Mas, então, que linguagem seria esta? Novamente Filosofia? Ela, nesta hipótese, não teria fim,  visto que, neste sentido, haveria regressão ao infinito.
Seria ela uma auto-reflexão  de si mesma? A questão, como se observa, é similar àquela que se formula quando o olho quer ver-se a si mesmo, ou ainda quando queremos sair do mundo para abarcá-lo com o pensamento, pensando-o de "fora", como um todo. Se procurarmos sair do mundo com o nosso pensamento , querendo pensá-lo como um todo (imaginação), na verdade ainda continuamos nele, visto que o nosso pensamento faz parte dele. Como se poderá pensar o mundo estando fora dele?! Não podemos ver o seu limite, uma vez que o limite sempre pressupõe um dentro e um fora, uma linha que separa o interno e o externo, e isto implicaria, ao se ver ou pensar o mundo de fora, isto é, em perspectiva, tê-lo como algo externo ao nosso pensamento, isto é, como algo dado ao pensamento, o qual (pensamento) estaria fora do mundo! Ora, isso, como já dito, é impossível; é produto de uma imaginação distorcida e ilusória e não de um pensamento coerente.
De qualquer modo, a obordagem do pensamento do ponto de vista da linguagem remete-nos para a sua forma, o que, em última instância, condiciona nossa atenção para a sua forma lógica. Aliás, a linguagem já é uma forma, visto que com ela, composta de elementos finitos (letras, vocábulos, estruturas, etc.), podemos dizer muito mais coisas ou pouco menos do que todas as coisas possíveis que existem no universo. Isto significa que o pensamento, para existir, não prescinde de uma formulação linguística. Na verdade, embora ele não se confunda com a linguagem, não se pode tê-lo expressamente sem esta. O pensamento não existe se não puder ser expressado sob alguma forma linguística, quer seja externa, oral ou escrita, quer seja interna, e, neste último caso, sob a forma de uma "surda" linguagem interior, uma linguagem interna "silenciosa". Não é possível pensar em algo complexo e abstrato sem uma forma linguística; por exemplo, não é possível pensar "matéria atrai matéria na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias (lei da gravidade), sem a expressão linguística em que é vazada. Como pensá-la sem dizê-la, dentro de nós, com aquelas palavras? Não é possível pensar tal lei através de sensações, percepções ou imagens. Posso ter a "figuração" sensorial de algo que cai, como uma pessoa, um lápis, uma moeda, mas não posso entender o significado dessa queda, em termos de lei, sem expressá-lo mediante a linguagem interior, silenciosa. O leitor pode verificar isso por conta própria. Na verdade, o homem, no mundo simbólico que lhe é peculiar, pensa porque fala, bem como fala porque pensa. É uma relação dialética: um não é o outro; mas, um é pelo outro. No mundo do pensamento evoluído, complexo, não pode haver separação entre o pensamento e a linguagem.
Desse modo, o pensamento não se identifica com a linguagem, não é idêntico a ela, mas também não é possível a sua existência em expressões simbólicas sem a formulação pertinente da linguagem. E falamos de linguagem em geral, através de suas manifestações simbólicas, em qualquer parte do mundo. A linguagem é um processo que se caracteriza essencialmente como fenômeno intersubjetivo, sob condições humanas biologicamente singulares e sociais. Isso significa que se o pensamento depende da linguagem para existir, é esta depende das relações intersubjetivas, das relações e práticas sociais, não há como deixar de concluir que aquilo que temos de mais íntimo, ou seja, o pensamento, depende de relações sociais também. Assim, não há pensamento, nem sua expressão formal, sem sociedade, sem a comunidade falante. A intersubjetividade é a marca singular do pensamento. O pensamento, pois, não é produto de "algo" misterioso e etéreo que se instala em nós; ele não é possível sem as práticas progressivas e intersubjetivas de comunicação através da linguagem, numa comunidade de falantes. Não há, portanto, uma realidade coisificada - como se fosse uma "alma" errante - que se chama pensamento onde se possa introduzir, posteriormente, os conhecimentos. O pensamento (a consciência) não é um saco vazio a ser preenchido por conhecimentos originados da experiência. Os próprios conhecimentos encarnam o corpo do pensamento. Nossos conhecimentos só se expressam mediante pensamentos. Por outro lado, os pensamentos não existem enquanto tais, senão através dos conhecimentos, os quais são obtidos mediante a experiência individual e social. Os conhecimentos e a experiência são o corpo do pensamento. Sem eles não existe espírito, não existe pensamento.



Lógica Pensamento Formal e Argumentação - Alaôr Caffé Alves, páginas 24 a 27

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