domingo, 28 de dezembro de 2014

Direito Positivo - Noção de Direito


Todo conhecimento jurídico necessita do conceito de direito. O conceito é um esquema prévio, um ponto de vista anterior, munido do qual o pensamento se dirige à realidade, desprezando seus vários setores e somente fixando aquele que corresponde às linhas ideais delineadas pelo conceito.

Sendo esse conceito um suposto da ciência do direito, ela jamais poderá determiná-lo. A definição essencial do direito é tarefa que ultrapassa a sua competência. Trata-se de problema supracientífico, ou melhor, jusfilosófico, já que a questão do "ser" do direito constitui campo próprio das indagações da ontologia jurídica.

Contudo a ontologia jurídica ao executar sua missão encontrará em seu caminho graves e intrincadas dificuldades que desafiam a argúcia dos pensadores. O grande problema consiste em encontrar uma definição única, concisa e universal, que abranja as inúmeras manifestações em que se pode apresentar o direito e que o purifique de notas contingentes, que velam sua verdadeira natureza, assinalando as essências que fazem dele uma realidade diversa das demais.

Como nos ensina com clarividência Lourival Vilanova, o conceito para ser universal há de abstrair de todo conteúdo, pois o único caminho possível será não reter, no esquema conceitual, o conteúdo que é variável, heterogêneo, acidental, determinado hic et nunc, mas sim as essências, que são permanentes e homogêneas. Ante a multiplicidade do dado, o conceito deve conter apenas a nota comum, a essência que se encontra em toda multiplicidade.

No entanto, não há entre os autores um certo consenso sobre o conceito de direito; impossível foi que se pusessem de acordo sobre uma fórmula única. Realmente, o direito tem escapado aos marcos de qualquer definição universal; dada a variedade de elementos e particularidades que apresenta, não é fácil discernir o mínimo necessário de notas sobre as quais se deve fundar seu conceito.

Isto é assim porque o termo "direito" não é unívoco, e nem tampouco equívoco, mas análogo, pois designa realidades conexas ou relacionadas entre si. Deveras, esse vocabulário ora se aplica à "norma", ora à "autorização ou permissão" dada pela norma de ter ou fazer o que ela não proíbe, ora à "qualidade do justo" etc., exigindo tantos conceitos quantas forem as realidades a que se refere. Em virtude disso impossível seria dar ao direito uma única definição. De maneira que a tarefa de definir, ontologicamente, o direito resulta sempre frustrada ante a complexidade do fenômeno jurídico, devido à impossibilidade de se conseguir um conceito universalmente aceito, que abranja de modo satisfatório toda a gama de elementos heterogêneos que compõem o direito.

Portanto, não é da alçada do direito civil elaborar o conceito geral ou essencial do direito.

Mas em razão do princípio metódico da divisão do trabalho, há necessidade de se decompor analiticamente o direito que é objeto de várias ciências: sociologia jurídica, história do direito etc., constituindo assim o aspecto em que será abordado.

A escolha da perspectiva em que se vai conhecer está condicionada pelo sistema de referência daquele que conhece o direito, pressupondo uma reflexão sobre as finalidades da ordem jurídica.

Ora, percebe-se que o direito só pode existir em função do homem.

O homem é um ser gregário por natureza, é um ser eminentemente social, não só pelo instinto sociável, mas também por força de sua inteligência que lhe demonstra que é melhor viver em sociedade para atingir seus objetivos. O homem é "essencialmente coexistência", pois não existe apenas, mas coexiste, isto é, vive necessariamente em companhia de outros homens. Com isso, espontânea e até inconscientemente é levado a formar grupos sociais: família, escola, associação esportiva, recreativa, cultural, religiosa, profissional, sociedade agrícola, mercantil, industrial, grêmio, partido político etc.

Em virtude disso estabelecem os indivíduos entre si "relações de coordenação, subordinação, integração e delimitação, relações essas que não se dão sem o concomitante aparecimento de normas de organização de conduta social".

O ser humano encontra-se em estado convivencial e pela própria convivência é levado a interagir; assim sendo, acha-se sob a influência de outros homens e está sempre influenciando outros. E como toda interação produz perturbação nos indivíduos em comunicação recíproca, que pode ser maior ou menor, para que a sociedade possa se conservar é mister delimitar a atividade das pessoas que a compõem mediante normas jurídicas.

"Se observarmos, atentamente, a sociedade, verificaremos que os grupos sociais são fontes inexauríveis de normas", por conseguinte, o Estado não é o criador único de normas jurídicas, porém é ele que condiciona a criação dessas normas, que não podem existir fora da sociedade política. Há um pluralismo de ordenações jurídicas; cada grupo social tem suas normas. Não é somente o Estado a fonte exclusiva de normas de direito, mas ele é uma organização territorial capaz de exercer o seu poder sobre as associações e pessoas, regulando-as, dando assim uma expressão integrada às atividades sociais. Donde se conclui que o Estado é uma instituição maior, que dispõe de amplos poderes e que dá efetividade à disciplina normativa das instituições menores. De modo que uma norma só será jurídica se estiver conforme a ordenação da sociedade política; logo, o Estado é o fator de unidade normativa da nação.

De um lado a realidade nos mostra um pluralismo de associações e de ordenações jurídicas, e de outro, a unidade da ordem normativa. Logo, as normas fundam-se na natureza social humana e na necessidade de organização no seio da sociedade.

A norma jurídica pertence à vida social, pois tudo o que há na sociedade é suscetível de revestir a forma da normatividade jurídica.

Somente as normas de direito podem assegurar as condições de equilíbrio imanentes à própria coexistência dos seres humanos, possibilitando a todos e a cada um o pleno desenvolvimento de suas virtualidades e a consecução e gozo de suas necessidades sociais, ao regular a possibilidade objetiva das ações humanas.

Sem professarmos uma doutrina sociologista, afirmamos o caráter "social" da norma jurídica, no sentido de que uma sociedade não pode fundar-se senão em normas jurídicas, que regulamentam relações interindividuais.

Nítida é a relação entre norma é poder. O poder é elemento essencial no processo de criação da norma jurídica. Isto porque toda norma de direito envolve uma opção, uma decisão por um caminho dentre muitos caminhos possíveis. É evidente que a norma jurídica surge de um ato decisório do Poder (constituinte, legislativo, judiciário, executivo, comunitário ou coletivo, e individual) político.

Verifica-se que a norma jurídica, às vezes, está sujeita não à decisão arbitrária do Poder, mas à prudência objetiva exigida pelo conjunto das circunstâncias fático-axiológicas em que se acham situados os respectivos destinatários.

Se assim não fosse a norma jurídica seria, na bela e exata expressão de Rudolf von Ihering, um "fantasma de direito", uma reunião de palavras vazias; sem conteúdo substancial esse "direito fantasma", como todas as assombrações, viveria uma vida de mentira, não se realizaria, e a norma jurídica foi feita para se realizar. A norma não corresponderia a sua finalidade; seria, no seio da sociedade, elemento de desordem, anarquia, instrumento de arbítrio e de opressão. A norma jurídica viveria numa "torre de marfim, isolada, à margem das realidades, autossuficiente, procurando em si mesma o seu próprio princípio e o seu próprio fim". Abstraindo-se do homem e da sociedade, alhear-se-ia de sua própria finalidade e de suas funções, passaria a ser uma pura ideia, criação cerebrina e arbitrária.

À vista do exposto poder-se-á dizer que o direito positivo é o conjunto de normas, estabelecidas pelo poder político, que se impõem e regulam a vida social de um dado povo em determinada época.

Portanto, é mediante normas que o direito pretende obter o equilíbrio social, impedindo a desordem e os delitos, procurando proteger a saúde e a moral pública, resguardando os direitos e a liberdade das pessoas.

Com isso não estamos afirmando que o direito seja só norma; apenas por uma questão de método é que assim o consideramos, uma vez que a tarefa do civilista é interpretar as normas de direito civil, embora deva estudá-las em atenção à realidade social subjacente (fato econômico, demográfico, técnico etc.) e ao valor, que confere sentido a esse fato, regulando a ação humana para a consecução de uma finalidade.

Realmente, parece útil lembrar, como o faz Van Acker, que uma vez gerada, não fica a norma estagnada, mas continua a sua vida própria, tendendo à autoconservação pela integração obrigatória que mantém os fatos da sua alçada e os valores com que os pretende reger.

Logo, os elementos do direito: fato, valor e norma coexistem numa unidade concreta.

Para melhor elucidar tal questão, passamos a transcrever o seguinte exemplo de Miguel Reale: ao se interpretar a norma que prevê o pagamento de letra de câmbio na data de seu vencimento, sob pena do protesto do título e de sua cobrança, goza o credor, desde logo, do privilégio de promover a execução do crédito. De modo que, se há um débito cambiário, deve ser pago, e, se não for quitada a dívida, deverá haver uma sanção. Como se vê, a norma de direito cambial representa uma disposição legal que se baseia num fato de ordem econômica (o fato de, na época moderna, as necessidades do comércio terem exigido formas adequadas de relação) e que visa a assegurar um valor, o valor do crédito, a vantagem de um pronto pagamento com base no que é formalmente declarado na letra de câmbio.

Tem-se um fato econômico que se liga a um valor de garantia para se expressar por meio de uma norma legal que atende às relações que devem existir entre aqueles dois elementos.

Portanto o jurista deve ter uma atitude intencionalmente compreensiva e teorética, ao estudar as normas postas pelo poder político, cujo valor deve procurar captar, e atualizar, em razão do fato que lhe é subjacente.

Com isso poder-se-á definir o direito como uma ordenação heterônoma das relações sociais, baseada numa integração normativa de fatos e valores.

(Curso de direito civil brasileiro, Maria Helena Diniz, Vol. I, págs. 17 a 23)

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