Dos
Delitos e das Penas
“Dos
delitos e das penas” é uma obra que pertence à corrente filosófica da segunda
metade do século XVIII.
Na
época as penas constituíam uma espécie de vingança coletiva; que induzia à
aplicação de punições com consequências superiores e mais terríveis que os
males produzidos pelos delitos, como a prática de torturas, penas de morte,
prisões desumanas, banimentos e acusações secretas.
Foi
contra essa situação que essa obra foi elogiada, pois a humanidade encontrava
novos caminhos para garantir a igualdade e a justiça.
Introdução
As
vantagens da sociedade devem ser igualmente repartidas entre todos os seus
membros. No entanto, nota-se que os privilégios, o poder e a felicidade, se acumulam num menor número, deixando para à maioria miséria
e fraqueza.
Só com boas leis podem impedir-se tais abusos, e as verdades
filosóficas revelaram as verdadeiras relações que unem os soberanos aos súditos
e os povos entre si.
E mesmo no nosso século, longe estamos de dissipar os preconceitos
que tínhamos. Ninguém se levantou, contra a barbárie das penas em uso nos
nossos tribunais. Ninguém se ocupou em reformar a irregularidade dos processos
criminais. Raramente se procurou
destruir, as séries de erros acumulados desde vários séculos; e poucas pessoas
tentaram reprimir, os abusos de um poder sem limites, e fazer cessar os
exemplos bem frequentes dessa fria atrocidade que os homens poderosos encaram
como um dos seus direitos.
Indicarei os princípios gerais, as faltas mais comuns e os erros
mais funestos, evitando os excessos dos que, por um amor mal entendido da
liberdade, procuram introduzir a desordem, e dos que desejariam submeter os
homens à regularidade dos claustros.
Mas, qual é a origem das penas, e qual o fundamento do direito de
punir? Quais serão as punições aplicáveis aos diferentes crimes? Será a pena de
morte verdadeiramente útil, necessária, indispensável para a segurança e a
ordem da sociedade? Serão justos os tormentos e as torturas? Conduzirão ao fim
que as leis propõem? Quais os melhores meios de prevenir os delitos? Serão as
penas úteis em todos os tempos? Que influência exercem sobre os costumes? Esses
problemas merecem que se procure resolvê-los com essa precisão geométrica que
triunfa da destreza dos sofismas, das dúvidas e das seduções da eloquência.
Mas, ao sustentar os direitos do gênero humano e da verdade,
contribuí para salvar da morte algumas das vítimas da tirania ou da ignorância funesta,
as bênçãos e as lágrimas de um único inocente reconduzido aos sentimentos da
alegria e da felicidade consolar-me-iam do desprezo do resto dos homens.
II. ORIGEM DAS PENAS
E DIREITO DE PUNIR
A MORAL política não pode proporcionar à sociedade nenhuma
vantagem, se não for fundada sobre sentimentos do coração do homem.
Toda lei que não for estabelecida sobre essa base encontrará
sempre uma resistência à qual será constrangida a ceder.
Consultemos, o coração humano; acharemos nele os princípios
fundamentais do direito de punir.
Formadas algumas sociedades, os indivíduos viviam num contínuo
estado de guerra entre si.
As leis foram as condições que reuniram os homens, cansados de
viver no meio de temores e de encontrar inimigos por toda parte, fatigados de
uma liberdade que a incerteza de conservá-la tornava inútil. Com isso sacrificaram
uma parte dela para gozar do resto com mais segurança. A soma de todas essas
porções de liberdade, sacrificadas ao bem geral, formou a soberania da nação; e
aquele que foi encarregado pelas leis do depósito das liberdades e dos cuidados
da administração foi proclamado o soberano do povo.
Não bastava, ter formado esse
depósito; era preciso protegê-lo contra as
usurpações de cada particular, pois tal é a tendência do homem para o
despotismo, que ele procura sem cessar, não só retirar da massa comum sua
porção de liberdade, mas ainda usurpar a dos outros.
Eram necessários meios poderosos para comprimir esse espírito
despótico. Esses meios foram as penas estabelecidas contra os infratores das
leis.
Só a necessidade constrange os homens a ceder uma parte de sua liberdade;
daí resulta que cada um só consente em pôr no depósito comum a menor porção
possível dela, precisamente o que era preciso para empenhar os outros em mantê-lo
na posse do resto.
O conjunto de todas essas pequenas
porções de liberdade é o fundamento do direito de punir. Todo exercício do
poder que se afastar dessa base é abuso e não justiça; é um poder de fato e não
de direito; é uma usurpação e não mais um poder legítimo.
As penas que ultrapassam a
necessidade de conservar o depósito da salvação pública são injustas por sua
natureza; e tanto mais justas serão quanto for a segurança e a liberdade que o
soberano conservar aos súditos.
III. CONSEQUÊNCIAS
DESSES PRINCÍPIOS
A primeira consequência desses princípios é que só as leis podem fixar
as penas de cada delito e que o direito de fazer leis penais não pode residir
senão na pessoa do legislador, que representa toda a sociedade unida por um
contrato social.
O magistrado, que também faz parte da sociedade, não pode com
justiça infligir a outro membro dessa sociedade uma pena que não seja estatuída
pela lei; e, do momento em que o juiz é mais severo do que a lei, ele é
injusto, pois acrescenta um castigo novo ao que já está determinado. Segue-se
que nenhum magistrado pode, mesmo sob o pretexto do bem público, aumentar a
pena pronunciada contra o crime de um cidadão.
A segunda consequência é que o soberano, que representa a
sociedade, só pode fazer leis gerais, às quais todos devem submeter-se; não lhe
compete, julgar se alguém violou essas leis.
No caso de um delito, há duas partes: o soberano, que afirma que o
contrato social foi violado, e o acusado, que nega essa violação. É preciso,
que haja entre ambos um terceiro que decida a contestação. Esse terceiro é o
magistrado, cujas sentenças devem ser sem apelo e que deve simplesmente
pronunciar se há um delito ou se não há.
Em terceiro lugar, mesmo que a atrocidade das mesmas não fosse
reprovada pela filosofia, por essa razão, esclarecida, que prefere governar homens
felizes e livres a dominar covardemente um rebanho de tímidos escravos; mesmo
que os castigos cruéis não se opusessem diretamente ao bem público e ao fim que
se lhes atribui, o de impedir os crimes, bastará provar que essa crueldade é
inútil, para que se deva considerá-la como odiosa, revoltante, contrária a toda
justiça e à própria natureza do contrato social.
IV. DA INTERPRETAÇÃO
DAS LEIS
Resulta ainda, dos princípios estabelecidos precedentemente, que
os juízes dos crimes não podem ter o direito de interpretar as leis penais, pela
razão mesma de que não são legisladores. Os juízes não receberam as leis como
uma tradição doméstica, ou como um testamento dos nossos antepassados, que aos
seus descendentes deixaria apenas a missão de obedecer. Recebem-nas da
sociedade viva, ou do soberano, que é representante dessa sociedade, como
depositário legítimo do resultado atual da vontade de todos.
Não se julgue que a autoridade das leis esteja fundada na
obrigação de executar antigas convenções; essas velhas convenções são nulas,
pois não puderam ligar vontades que não existiam. Não se pode sem injustiça
exigir sua execução; seria reduzir os homens a não passar de um vil rebanho sem
vontade e sem direitos. As leis emprestam sua força da necessidade de orientar
os interesses particulares para o bem geral e do juramento formal ou tácito que
os cidadãos vivos voluntariamente fizeram ao rei.
Qual será, o legítimo intérprete das leis? O soberano, o
depositário das vontades atuais de todos; e não o juiz, cujo dever consiste
exclusivamente em examinar se tal homem praticou ou não um ato contrário às
leis.
O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei
geral; a menor, a ação conforme ou não à lei; a consequência, a liberdade ou a
pena. Se o juiz for constrangido a fazer um raciocínio a mais, ou se o fizer
por conta própria, tudo se torna incerto e obscuro.
Cada homem tem sua maneira própria de ver; e o mesmo homem, em
diferentes épocas, vê diversamente os mesmos objetos. O espírito de uma lei
seria, o resultado da boa ou má lógica de um juiz, de uma digestão fácil ou
penosa, da fraqueza do acusado, da violência das paixões do magistrado, de suas
relações com o ofendido, enfim, de todas as pequenas causas que mudam as
aparências e desnaturam os objetos no espírito inconstante do homem.
As leis devem ser fixas e literais, e só confiarem ao magistrado a
missão de examinar os atos dos cidadãos, para decidir se tais atos são
conformes ou contrários à lei escrita.
Com leis penais executadas à letra, cada cidadão pode calcular
exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável; e isso poderá desviá-lo do
crime. Gozará com segurança de sua liberdade e dos seus bens.
V. DA OBSCURIDADE DAS
LEIS
Se a interpretação arbitrária das leis é um mal, também o é a sua
obscuridade, pois precisam ser interpretadas. Esse inconveniente é maior quando as leis não são escritas em língua
vulgar, pois o cidadão, que não puder julgar por si mesmo as consequências que
devem ter os seus próprios atos sobre a sua liberdade e sobre os seus bens,
ficará na dependência de um pequeno número de homens depositários e intérpretes
das leis.
Vemos a utilidade da imprensa, que torna público o código das
leis. Foi a imprensa que ajudou a diminuir crimes atrozes, se saímos enfim
desse estado de barbárie que tornava nossos antepassados ora escravos ora tiranos,
é à imprensa que o devemos.
A humanidade gemia sob o jugo da implacável superstição; a avareza
e a ambição de um pequeno número de homens poderosos inundavam de sangue humano
os palácios dos grandes e os tronos dos reis. Eram traições e morticínios
públicos. O povo só encontrava na nobreza opressores e tiranos; e os ministros
do Evangelho, manchados na carnificina e as mãos ainda sangrentas, ousavam
oferecer aos olhos do povo um Deus de misericórdia e de paz.
VI. DA PRISÃO
OUTORGA-SE, aos magistrados encarregados de fazer as leis, um
direito contrário ao fim da sociedade, que é a segurança pessoal; refiro-me ao
direito de prender os cidadãos, de tirar a liberdade ao inimigo sob pretextos
frívolos, e, por conseguinte de deixar livres os que eles protegem, mau grado
todos os indícios do delito.
Como se tornou tão comum um erro tão funesto? Embora a prisão
difira das outras penas, por dever necessariamente preceder a declaração
jurídica do delito, nem por isto deixa de ter, como todos os outros gêneros de
castigos, o caráter essencial de que só a lei deve determinar o caso em que é
preciso empregá-la.
Assim, a lei deve estabelecer, de maneira fixa, por que indícios
de delito um acusado pode ser preso e submetido a interrogatório.
O clamor público, a fuga, as confissões particulares, o depoimento
de um cúmplice do crime, as ameaças que o acusado pode fazer, seu ódio
inveterado ao ofendido, um corpo de delito existente, e outras presunções
semelhantes, bastam para permitir a prisão de um cidadão. Tais indícios devem,
ser especificados de maneira estável pela lei, e não pelo juiz, cujas sentenças
se tornam um atentado à liberdade pública, quando não são simplesmente a
aplicação particular de uma máxima geral emanada do código das leis.
À medida que as penas forem mais brandas, quando as prisões já não
forem a horrível mansão do desespero e da fome, quando a piedade e a humanidade
penetrarem nas masmorras, quando enfim os executores dos rigores da justiça
abrirem os corações à compaixão, as leis poderão contentar-se com indícios mais
fracos para ordenar a prisão.
A prisão não deveria deixar nenhuma nota de infâmia sobre o
acusado cuja inocência foi juridicamente reconhecida. Entre os romanos, quantos
cidadãos não vemos, acusados anteriormente de crimes hediondos, mas em seguida
reconhecidos inocentes, receberem da veneração do povo os primeiros cargos do
Estado? Porque é tão diferente, em nossos dias, a sorte de um inocente preso?
É porque o sistema atual da jurisprudência criminal apresenta aos
nossos espíritos a ideia da força e do poder, em lugar da justiça; é porque se
lançam, na mesma masmorra, o inocente suspeito e o criminoso convicto; é porque
a prisão, entre nós, é antes um suplício que um meio de deter um acusado; é
porque, finalmente, as forças que defendem o trono e os direitos da nação estão
separadas das que mantêm as leis no interior, quando deveriam estar
estreitamente unidas.
Mas, como as leis e os costumes de um povo estão sempre atrasados
de vários séculos em relação às luzes atuais, conservamos ainda a barbárie e as
ideias dos caçadores do norte, nossos selvagens antepassados.
Os nossos costumes e as nossas leis retardatárias estão longe das
luzes dos povos. Ainda estamos dominados pelos preconceitos bárbaros que nos
legaram os nossos avós, os bárbaros caçadores do norte.
VII. DOS INDÍCIOS DO
DELITO E DA FORMA DOS JULGAMENTOS
EIS um teorema geral, que pode ser muito útil para calcular a
certeza de um fato e, principalmente, o valor dos indícios de um delito: Quando
as provas de um fato se apoiam todas entre si, quando os indícios do delito não
se sustentam senão uns pelos outros, quando a força de várias provas depende da
verdade de uma só, o número dessas provas nada acrescenta nem subtrai à probabilidade
do fato: merecem pouca consideração, porque, destruindo a única prova que
parece certa, derrubais todas as outras.
Mas, quando as provas são independentes, quando cada indício se
prova à parte, quanto mais numerosos forem esses indícios, tanto mais provável
será o delito, porque a falsidade de uma prova em nada influi sobre a certeza
das restantes.
As provas de um delito podem distinguir-se em provas perfeitas e
provas imperfeitas.
As provas perfeitas são as que demonstram positivamente que é impossível
que o acusado seja inocente. As provas são imperfeitas quando não excluem a
possibilidade da inocência do acusado.
Uma única prova perfeita é suficiente para autorizar a condenação;
se quiser, porém, condenar sobre provas imperfeitas, como cada uma dessas
provas não estabelece a impossibilidade da inocência do acusado, é preciso que
sejam em número muito grande para valerem uma prova perfeita, para provarem
todas juntas que é impossível que o acusado não seja culpado.
É, mais fácil sentir essa certeza moral de um delito do que
defini-la exatamente.
Eis o que me faz encarar como sábia a lei que, em algumas nações,
dá ao juiz principal, assessores que o magistrado não escolheu, mas que a sorte
designou livremente; porque então a ignorância, que julga por sentimento, está
menos sujeita ao erro do que homem instruído que decide segundo a incerta
opinião.
Quando as leis são claras e precisas, o dever do juiz limita-se à
constatação do fato. Se são necessárias destreza e habilidade na investigação
das provas de um delito, se requerem clareza e precisão na maneira de
apresentar o seu resultado, para julgar segundo esse mesmo resultado, basta o
simples bom-senso: guia menos enganador do que todo o saber de um juiz
acostumado a só procurar culpados por toda parte e levar tudo ao sistema que
adotou segundo os seus estudos.
Felizes as nações entre as quais o conhecimento das leis não é uma
ciência.
Lei sábia e cujos efeitos são sempre felizes é a que prescreve que
cada um seja julgado por seus iguais; porque, quando se trata da fortuna e da
liberdade de um cidadão, todos os sentimentos inspirados pela desigualdade
devem silenciar. O desprezo com o qual o homem poderoso olha para a vitima do
infortúnio, e a indignação que experimenta o homem de condição medíocre ao ver
o culpado que está acima dele por sua condição, são sentimentos perigosos que
não existem nos julgamentos de que falo.
Quando o culpado e o ofendido estão em condições desiguais, os juízes
devem ser escolhidos, metade entre os iguais do acusado e metade entre os do
ofendido, para contrabalançar assim os interesses pessoais, que modificam, as aparências
dos objetos, e para só deixar falar a verdade e as leis.
Igualmente justo é que o culpado possa recusar um certo número dos
juízes que lhe forem suspeitos, e, se o acusado gozar constantemente desse
direito, exercê-lo-á com reserva; porque de outro modo pareceria condenar-se a
si mesmo.
Sejam públicos os julgamentos; sejam-no também as provas do crime:
e a opinião, que é talvez o único laço das sociedades, porá freio à violência e
às paixões. O povo dirá: Não somos escravos, mas protegidos pelas leis. Esse
sentimento de segurança, que inspira a coragem, equivale a um tributo para o
soberano que compreende os seus verdadeiros interesses.
VIII. DAS TESTEMUNHAS
É IMPORTANTE, determinar o grau de confiança que se deve dar às
testemunhas e a natureza das provas necessárias para constatar o delito.
Por motivos frívolos e absurdos as leis não admitem em testemunho
nem as mulheres, por causa de sua franqueza, nem os condenados, porque estes
morreram civilmente, nem as pessoas com nota de infâmia, porque, em todos esses
casos, uma testemunha pode dizer a verdade, quando não tem nenhum interesse em
mentir.
Entre os abusos de palavras que tiveram certa influência sobre os
negócios deste mundo, um dos mais notáveis é o que faz considerar como nulo o
depoimento de um culpado já condenado.
É preciso que os depoimentos de um culpado já condenado não possam
retardar o curso da
justiça; mas porque, após a sentença, não conceder aos interesses da verdade e
à terrível situação do culpado alguns instantes ainda, para justificar, se possível,
ou aos seus cúmplices ou a si próprio, com depoimentos novos que mudam a natureza
do fato?
As formalidades e criteriosas procrastinações são necessárias nos
processos criminais, ou porque não deixam nada à arbitrariedade do juiz, ou
porque fazem compreender ao povo que os julgamentos são feitos com solenidade e
segundo as regras, e não precipitadamente ditados polo interesse; ou,
finalmente, porque a maior parte dos homens, escravos do hábito, e mais
inclinados a sentir do que raciocinar, fazem assim uma ideia mais augusta das
funções do magistrado.
A verdade, tem necessidade de certa pompa exterior para merecer o
respeito do povo.
As formalidades, devem ser fixadas, por leis, nos limites em que
não possam prejudicar a verdade.
Disse eu que se podia admitir em testemunho toda pessoa que não
tem nenhum interesse em mentir. Deve, conceder-se à testemunha mais ou menos
confiança, à proporções do ódio ou da amizade que ela tem ao acusado e de
outras relações mais ou menos estreitas que ambos mantenham.
Uma só testemunha não basta porque, negando o acusado o que a
testemunha afirma, não há nada de certo e a justiça deve então respeitar o
direito que cada um tem de ser julgado inocente.
Deve dar-se às testemunhas um crédito tanto mais circunspecto
quanto mais atrozes são os crimes e mais inverossímeis as circunstâncias. Tais
são, as acusações de magia e as ações gratuitamente cruéis. No primeiro caso, é
melhor acreditar que as testemunhas mentem, porque é mais comum ver vários
homens caluniarem de concerto, por ódio ou por ignorância, do que ver um só
homem exercer um poder que Deus recusou a todo ser criado.
Da mesma forma, não se deve admitir com precipitação a acusação de
uma crueldade sem motivos, porque o homem só é cruel por interesse, por ódio ou
por temor. O coração humano é incapaz de um sentimento inútil; todos os seus
sentimentos são o resultado das impressões que os objetos causaram sobre os
sentidos.
Deve, dar-se menos crédito a um homem que é membro de uma ordem,
ou de uma casta, ou de uma sociedade particular, cujos costumes e máximas são
em geral desconhecidos, ou diferem dos usos comuns, porque, além de suas
próprias paixões, esse homem tem ainda as paixões da sociedade da qual faz
parte.
Enfim, os depoimentos das testemunhas devem ser quase nulos,
quando se trata de algumas palavras das quais se quer fazer um crime; porque o
tom, os gestos e tudo o que precede ou segue as diferentes ideias que os homens
ligam a suas palavras, alteram e modificam de tal modo os discursos que é quase
impossível repeti-los com exatidão.
As ações violentas, que constituem os delitos, deixam traços na maioria
das circunstâncias que as acompanham e efeitos que das mesmas derivam; mas, as
palavras não deixam vestígio e só subsistem na memória, quase sempre infiel e muitas
vezes influenciadas, dos que as ouviram.
É, infinitamente mais fácil fundar uma calúnia sobre discursos do
que sobre ações, pois o número das circunstâncias que se alegam para provar as
ações fornece ao acusado mais recursos para justificar-se; ao passo que um
delito de palavras não apresenta, nenhum meio de justificação.
IX. DAS ACUSAÇÕES
SECRETAS
As acusações secretas são um abuso
manifesto, mas consagrado e tornado necessário em vários governos, pela
fraqueza de sua constituição. Tal uso torna os homens falsos e pérfidos. Aquele
que suspeita um delator no seu concidadão vê nele logo um inimigo.
Costumam, mascarar-se os próprios sentimentos; e o hábito de
ocultá-los a outrem faz que cedo sejam dissimulados a si mesmo.
Quem poderá defender-se da calúnia, quando esta se arma com o
escudo mais sólido da tirania: o sigilo?...
Quais são, os motivos sobre os quais se apoiam os que justificam
as acusações e as penas secretas? A tranquilidade pública? A segurança e a
manutenção da forma de governo?
É mister confessar que estranha constituição é aquela em que o
governo, que tem por si a força e a opinião, ainda mais poderosa do que a
força, parece todavia temer cada cidadão!
Receia-se que o acusador não esteja em segurança? As leis
são, insuficientes para defendê-lo, e os
súditos são mais poderosos do que o soberano e as leis.
Desejar-se-ia salvar o delator da infâmia a que se expõe? Seria,
então, confessar que se autorizam as calúnias secretas, mas que se punem as
calúnias públicas.
Já o disse Montesquieu: as acusações públicas são conformes ao
espírito do governo republicano, no qual o zelo do bem geral deve ser a
primeira paixão dos cidadãos. Nas monarquias, em que o amor da pátria é muito
fraco, é sábia a instituição de magistrados encarregados de acusar, em nome do
público, os infratores das leis. Mas, todo governo, republicano ou monárquico,
deve infligir ao caluniador a pena que o acusado sofreu, se ele for culpado.
X. DOS
INTERROGATÓRIOS SUGESTIVOS
NOSSAS leis proíbem os interrogatórios sugestivos, os que se fazem
sobre o fato mesmo do delito; porque, segundo os nossos jurisconsultos, só se
deve interrogar sobre a maneira pela qual o crime foi cometido e sobre as
circunstâncias que o acompanham.
Um juiz não pode, permitir as questões diretas, que sugiram ao
acusado uma resposta imediata. O juiz que interroga, só deve ir ao fato indiretamente,
e nunca em linha reta.
Se estabeleceu esse método para evitar sugerir ao acusado uma
resposta que o salve, ou por que foi considerada coisa monstruosa e contra a
natureza um homem acusar-se a si mesmo, qualquer que tenha sido o fim visado
com a proibição dos interrogatórios sugestivos, fez-se cair as leis numa
contradição notória, pois que ao mesmo tempo se autorizou a tortura.
Haverá, interrogatório mais sugestivo do que a dor? A questão
arranca ao homem fraco uma confissão pela qual ele se livra da dor presente,
que o afeta mais fortemente do que todos os males futuros.
E, se um interrogatório é contrário à natureza, obrigando o
acusado a acusar-se a si mesmo, não será ele constrangido a isso mais
violentamente pelos tormentos e as convulsões da dor? Os homens, se ocupam
muito mais, em sua norma de conduta, com a diferença das palavras do que com a
das coisas.
Observemos, que aquele que se obstina a não responder ao
interrogatório a que é submetido merece sofrer uma pena que deve ser fixada
pelas leis.
Essa pena deve ser muito pesada; porque o silêncio de um
criminoso, perante o juiz que o interroga, é para a sociedade um escândalo e a
justiça uma ofensa que cumpre prevenir tanto quanto possível.
Mas, essa pena particular já não é necessária quando o crime já
foi constatado e o criminoso convencido, pois nesse caso o interrogatório se
torna inútil.
As confissões do acusado não são necessárias quando provas suficientes
demonstraram que ele é culpado do crime de que se trata.
Este último caso é o mais ordinário; e a experiência mostra que,
na maior parte dos processos criminais, os culpados negam tudo.
XI. DOS JURAMENTOS
OUTRA contradição entre as leis e os sentimentos naturais é exigir
de um acusado o juramento de dizer a verdade, quando ele tem o maior interesse
em calá-la. Como se o homem pudesse jurar de boa fé que vai contribuir para sua
própria destruição!
Consulte-se a experiência e se reconhecerá que os juramentos são
inúteis, pois não há juiz que não convenha que jamais o juramento faz o acusado
dizer a verdade.
XII. DA QUESTÃO OU
TORTURA
É uma barbaria consagrada pelo uso na maioria dos governos aplicar
a tortura a um acusado enquanto se faz o processo, quer para arrancar dele a
confissão do crime, quer para esclarecer as contradições em que caiu, quer para
descobrir os cúmplices ou outros crimes de que não é acusado, mas do qual
poderia ser culpado.
Um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do
juiz; e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública depois que ele se
convenceu de ter violado as condições com as quais estivera de acordo. O
direito da força só pode, autorizar um juiz a infligir uma pena a um cidadão
quando ainda se duvida se ele é inocente ou culpado.
Eis uma proposição simples: ou o delito é certo, ou é incerto. Se
é certo, só deve ser punido com a pena fixada pela lei, e a tortura é inútil,
pois já não se tem necessidade das confissões do acusado. Se o delito é
incerto, não é hediondo atormentar um inocente? Com efeito, perante as leis, é
inocente aquele cujo delito não se provou.
Mas, que se deve pensar das torturas, esses suplícios secretos que
a tirania emprega na obscuridade das prisões e que se reservam tanto ao
inocente como ao culpado?
Importa que nenhum delito conhecido fique impune; mas, nem sempre
é útil descobrir o autor de um delito encoberto nas trevas da incerteza.
Um crime já cometido, para o qual já não há remédio, só pode ser
punido pela sociedade para impedir que os outros homens cometam outros
semelhantes pela esperança da impunidade.
Se é verdade que a maioria dos homens respeita as leis pelo temor
ou pela virtude, se é provável que um cidadão prefira segui-las a violá-las, o
juiz que ordena a tortura expõe-se constantemente a atormentar inocentes.
É monstruoso e absurdo exigir que um homem seja acusador de si mesmo,
e procurar fazer nascer a verdade pelos tormentos, como se essa verdade residisse
nos músculos e nas fibras do infeliz!
A única diferença existente entre a tortura e as provas de fogo é que
a tortura só prova o crime quando o acusado quer confessar, ao passo que as
provas queimantes deixavam uma marca exterior, considerada como prova do crime.
Essa diferença é mais aparente do que real. O acusado é tão capaz
de não confessar o que se exige dele quanto o era outrora de impedir, sem
fraude, os efeitos do fogo e da água fervendo.
Todos os atos da nossa vontade são proporcionais à força das
impressões sensíveis que os causam, e a sensibilidade de todo homem é limitada.
Se a impressão da dor se torna muito forte para ocupar todo o poder da alma,
ela não deixa a quem a sofre nenhuma outra atividade que exercer senão tomar, a
via mais curta para evitar os tormentos atuais.
Dessa forma, o acusado já não pode deixar de responder, pois não
poderia escapar às impressões do fogo e da água.
O inocente exclamará, que é culpado, para fazer cessar torturas
que já não pode suportar; e o mesmo meio empregado para distinguir o inocente
do criminoso fará desaparecer toda diferença entre ambos.
A tortura é muitas vezes um meio seguro de condenar o inocente
fraco e de absolver o celerado robusto. É esse,
o resultado terrível dessa barbárie que se julga capaz de produzir a
verdade, desse uso digno dos canibais, e que os romanos, reservavam
exclusivamente aos escravos, vítimas infelizes de um povo cuja feroz virtude
tanto se tem gabado.
De dois homens, igualmente inocentes ou igualmente culpados,
aquele que for mais corajoso e mais robusto será absolvido; o mais fraco,
porém, será condenado em virtude deste raciocínio: “Eu, juiz, preciso encontrar
um culpado. Tu, que és vigoroso, soubeste resistir à dor, e por isso eu te
absolvo. Tu, que és fraco, cedeste à força dos tormentos; portanto, eu te
condeno. Sei que uma confissão arrancada pela violência da tortura não tem
valor algum; mais, se não confirmares agora o que confessaste, far-te-ei atormentar
de novo”.
Interrogam um acusado para conhecer a verdade; mas, se tão
dificilmente a distinguem no ar, nos gestos e na fisionomia de um homem tranquilo,
como a descobrirão nos traços descompostos pelas convulsões da dor, quando
todos os sinais, que traem às vezes a verdade na fronte dos culpados, estiverem
alterados e confundidos?
Toda ação violenta faz desaparecer as diferenças dos movimentos
pelos quais se distingue, às vezes, a verdade da mentira.
Resulta ainda do uso das torturas uma consequência bastante
notável: é que o inocente se acha numa posição pior que a do culpado. O
inocente submetido à questão tem tudo contra si: ou será condenado, se
confessar o crime que não cometeu, ou será absolvido, mas depois de sofrer
tormentos que não mereceu.
O culpado, ao contrário, tem por si um conjunto favorável: será
absolvido se suportar a tortura com firmeza, e evitará os suplícios de que foi
ameaçado, sofrendo uma pena muito mais leve. Assim, o inocente tem tudo que
perder, o culpado só pode ganhar.
Essas verdades são sentidas, pelos próprios legisladores; mas, nem
por isso suprimiram a tortura. Limitam-se a achar que as confissões do acusado
pelos tormentos são nulas se não forem em seguida confirmadas pelo juramento.
Se, porém, recusar-se a confirmá-las, será torturado de novo.
Em alguns países, essas violências não são permitidas mais do que
três vezes; em outros, o direito de torturar fica inteiramente à discrição do
juiz.
São inumeráveis os exemplos
de inocentes que se confessaram culpados no meio de torturas.
Um dos motivos, pelo qual se submete à questão um homem que se
supõe culpado, é a esperança de esclarecer as contradições em que ele caiu nos
interrogatórios que o fizeram sofrer. Mas, o medo do suplício, a incerteza do
julgamento que vai ser pronunciado, a solenidade dos processos, a majestade do
juiz, a própria ignorância, igualmente comum à maior parte dos acusados
inocentes ou culpados, são outras tantas razões para fazer cair em contradição,
não só a inocência que treme como o crime que procura ocultar-se.
E submeter um acusado à tortura, para descobrir se ele é culpado
de outros crimes além daquele de que é acusado, é fazer este odioso raciocínio:
“Tu és culpado de um delito; é, pois, possível que tenhas cometido cem outros.
Em verdade, abusos tão ridículos não deveriam ser tolerados no século XVIII.
A solidez dos princípios que expusemos era conhecida dos
legisladores romanos, que só submetiam à tortura os escravos, espécie de homens
sem direito algum e sem nenhuma parte nas vantagens da sociedade civil. Esses
princípios foram adotados na Inglaterra, nação que prova a excelência de suas
leis pelos seus progressos nas ciências, pela superioridade do seu comércio,
pela extensão de suas riquezas, por seu poder e por frequentes exemplos de
coragem e de virtude política.
A Suécia, igualmente convencida da injustiça da tortura, já não
permite o seu uso. Esse infame costume foi abolido por um dos mais sábios monarcas
da Europa, que elevou a filosofia ao trono e que, amigo dos súditos, os tornou iguais
e livres sob a dependência das leis; única liberdade que homens razoáveis podem
esperar da sociedade; única igualdade que esta pode admitir.
Enfim, as leis militares não admitiram a tortura; e, se esta
pudesse existir em alguma parte, seria sem dúvida nos exércitos, compostos em
grande parte da escória das nações.
XIII. DA DURAÇÃO DO
PROCESSO E DA PRESCRIÇÃO
QUANDO o delito é constatado e as provas são certas, é justo
conceder ao acusado o tempo e os meios de justificar-se; é preciso que esse
tempo seja curto para não retardar o
castigo que deve seguir o crime.
Cabe às leis fixar o espaço de tempo que se deve empregar para a investigação
das provas do delito, e o que se deve conceder ao acusado para sua defesa.
Quando se trata de crimes atrozes cuja memória subsiste por muito
tempo, se os mesmos forem provados, não deve haver nenhuma prescrição em favor do
criminoso que se subtrai ao castigo pela fuga. Não é esse, o caso dos delitos ignorados
e pouco consideráveis: é mister fixar um tempo após o qual o acusado, punido
pelo exílio voluntário, possa reaparecer sem recear novos castigos.
A obscuridade que envolveu por muito tempo o delito diminui muito
a necessidade do exemplo, e permite devolver ao cidadão sua condição e seus
direitos com o poder de torná-lo melhor.
O tempo que se emprega na investigação das provas e o que fixa a
prescrição não devem ser prolongados em razão da gravidade do crime que se
persegue, porque, enquanto um crime não está provado, quanto mais atroz, menos
verossímil é ele. Será preciso, reduzir o tempo dos processos e aumentar o que
se exige para a prescrição.
Podemos aplicar penas iguais para crimes diferentes, considerando
como partes do castigo o exílio voluntário ou a prisão que precedeu a sentença.
Podem distinguir-se duas espécies de delitos. A primeira é a dos
crimes atrozes, que começa pelo homicídio e que compreende toda a progressão
dos mais horríveis assassínios. Incluiremos na segunda espécie os delitos menos
hediondos do que o homicídio.
Essa distinção é tirada da natureza. A segurança das pessoas é um
direito natural; a segurança dos bens é um direito da sociedade.
Se quiser estabelecer regras de probabilidade para essas duas
espécies de delitos, é preciso colocá-las sobre bases diferentes. Nos grandes
crimes, pela razão mesma de que são mais raros, deve diminuir-se a duração da
instrução e do processo, porque a inocência do acusado é mais provável do que o
crime. Deve-se, porém, prolongar o tempo da prescrição.
Por esse meio, que acelera a sentença definitiva, tira-se aos maus
a esperança de uma impunidade tanto mais perigosa quanto maiores são os crimes.
Ao contrário, nos delitos menos consideráveis e mais comuns, é preciso
prolongar o tempo dos processos, porque a inocência do acusado é menos
provável, e diminuir o tempo fixado para a prescrição, porque a impunidade é
menos perigosa.
É preciso notar que, essa diferença de processo entre as duas
espécies de delitos pode dar ao criminoso a esperança da impunidade. Um acusado
solto por falta de provas não é nem absolvido nem condenado; e pode ser preso
de novo pelo mesmo crime e submetido a novo exame, se descobrirem novos
indícios do seu delito antes de terminar o tempo fixado para a prescrição,
segundo o crime cometido.
Cometem-se na sociedade certos crimes que são ao mesmo tempo
comuns e difíceis de constatar. Desde então, pois é quase impossível provar
tais crimes, a inocência é provável perante a lei. E, como a esperança da
impunidade contribui pouco para multiplicar essas espécies de delitos, que têm
todos causas diferentes, a impunidade raramente é perigosa. Nesse caso,
podem, diminuir-se igualmente o tempo
dos processos e o da prescrição.
Mas, é principalmente para os crimes difíceis de provar, como o
adultério, a pederastia, que se admitem arbitrariamente as presunções, as conjecturas,
as semiprovas, como se um homem pudesse ser semi-inocente ou semiculpado, e
merecer ser semi-absolvido ou semipunido!
É nesse gênero de delitos que se exercem as crueldades da tortura
sobre o acusado, sobre as testemunhas, sobre a família inteira do infeliz de
quem se suspeita.
Quando refletimos sobre essas coisas, reconhecemos com amargura
que a razão quase nunca tem sido consultada nas leis que se deram aos povos. Os
crimes hediondos, os delitos obscuros e quiméricos, e os inverossímeis, são os que se consideram
constatados sobre simples conjecturas e indícios menos sólidos e mais
equívocos. Dizer-se ia que as leis e o magistrado só têm interesse em descobrir
um crime, e não em procurar a verdade; e que o legislador não vê que se expõe
constantemente ao risco de condenar um inocente, pronunciando-se sobre crimes
inverossímeis ou mal provados.
XIV. DOS CRIMES
COMEÇADOS; DOS CÚMPLICES; DA IMPUNIDADE
SE as leis não podem punir a intenção, uma ação que seja o começo
de um delito e que prova a vontade de cometê-lo, merece um castigo, mas menor do que o que seria aplicado se o crime tivesse
sido cometido.
Esse castigo é necessário, porque é importante prevenir mesmo as
primeiras tentativas dos crimes. Mas, como pode haver um intervalo entre a
tentativa de um delito e a sua execução, é justo reservar uma pena maior ao
crime consumado, para deixar àquele que apenas começou o crime alguns motivos
que o impeçam de acabá-lo.
Deve seguir-se a mesma gradação nas penas, em relação aos
cúmplices, se estes não foram todos executantes imediatos.
Quando vários homens se unem para enfrentar um perigo, quanto
maior é o perigo, tanto mais procurarão torná-lo igual para todos. Se as leis
punissem mais severamente os executantes do crime do que os simples cúmplices,
seria mais difícil aos que meditam um atentado encontrar entre eles um homem
que quisesse executá-lo, porque o risco seria maior, em virtude da diferença
das penas. Há, contudo, um caso em que a gente deve afastar-se da regra que
formulamos, e é quando o executante do crime recebeu dos cúmplices uma
recompensa particular; como a diferença do risco foi compensada pela diferença
das vantagens, o castigo deve ser igual.
É importante que as leis deixem aos cúmplices da má ação o mínimo
de meios possível para que se ponham de acordo.
Alguns tribunais oferecem a impunidade ao cúmplice de um crime que
trair os seus companheiros. Isso apresenta vantagens; mas, não está isento de perigos,
já que a sociedade autoriza a traição, que repugna aos próprios celerados. Ela
introduz os crimes de covardia, bem mais funestos do que os crimes de energia e
de coragem, porque a coragem é pouco comum e espera apenas uma força benfazeja
que a dirija para o bem público, ao passo que a covardia, é um contágio que
infecta rapidamente todas as almas.
O tribunal que emprega a impunidade para conhecer um crime mostra
que se pode encobrir esse crime, pois que ele não o conhece; e as leis
descobrem lhe a fraqueza, implorando o socorro do próprio celerado que as
violou.
Por outro lado, a esperança da impunidade, para o cúmplice que
trai, pode prevenir grandes crimes e reanimar o povo, sempre apavorado quando
vê crimes cometidos sem conhecer os culpados.
Esse uso mostra aos cidadãos que aquele que infringe as leis, as
convenções públicas, já não é fiel às convenções particulares.
Uma lei geral, que promete a impunidade a todo cúmplice que revela
um crime, seria preferível a uma declaração especial num caso particular:
preveniria a união dos maus, pelo temor recíproco que inspiraria a cada um de
se expor sozinho aos perigos; e os tribunais já não veriam os celerados
encorajados pela ideia de que há casos em que se pode ter necessidade deles.
De resto, seria preciso acrescentar aos dispositivos dessa lei que
a impunidade traria consigo o banimento do delator.
XV. DA MODERAÇÃO DAS
PENAS
As verdades expostas demonstram à evidência que o fim das penas
não pode ser atormentar um ser sensível, nem fazer que um crime não cometido
seja cometido.
Os castigos têm por fim impedir o culpado de ser nocivo futuramente
à sociedade e desviar seus concidadãos da senda do crime.
Entre as penas, e na maneira de aplicá-las aos delitos, devemos
escolher os meios que causem a impressão mais eficaz e mais durável, e, ao
mesmo tempo, menos cruel no corpo do culpado.
Quanto mais atrozes forem os castigos, tanto mais audacioso será o
culpado para evita-los. Acumulará os crimes, para subtrair-se à pena merecida
pelo primeiro.
Para que o castigo produza o efeito que dele se deve esperar,
basta que o mal que causa ultrapasse o bem que o culpado retirou do crime.
Devem contar-se ainda como parte do castigo os terrores que precedem a execução
e a perda das vantagens que o crime devia produzir. Toda severidade que
ultrapasse os limites se torna supérflua e, por isso, tirânica.
Os males que os homens conhecem por funesta experiência regularão
melhor a sua conduta do que aqueles que eles ignoram. Suponde duas nações entre
aquelas em que as penas são proporcionais aos delitos. Sendo a escravidão
perpétua o maior castigo em uma, e o suplício o maior em outra, é certo que
essas duas penas inspirarão em cada uma igual terror.
A crueldade das penas produz ainda dois resultados, contrários ao
fim do seu estabelecimento, que é prevenir o crime.
Em primeiro lugar, é muito difícil estabelecer uma justa proporção
entre os delitos e as penas; porque, embora uma crueldade tenha multiplicado as
espécies de tormentos, nenhum suplício pode ultrapassar o último grau da força
humana, limitada pela sensibilidade e a organização do corpo do homem. Além
desses limites, se surgirem crimes mais hediondos, onde se encontrarão penas
bastante cruéis?
Em segundo lugar, os suplícios mais horríveis podem acarretar às
vezes a impunidade. Se as leis são cruéis, ou logo serão modificadas, ou não
mais poderão vigorar e deixarão o crime impune.
XVI. DA PENA DE MORTE
Ante o espetáculo dessa profusão de suplícios que jamais tornaram
os homens melhores, devemos analisar se a pena de morte é verdadeiramente útil
e se é justa num governo sábio.
Quem poderia ter dado a homens o direito de degolar seus
semelhantes? Esse direito não tem certamente a mesma origem que as leis que
protegem.
A soberania e as leis não são mais do que a soma das pequenas
porções de liberdade que cada um cedeu à sociedade. Representam a vontade
geral, resultado da união das vontades particulares. Mas, quem já pensou em dar
a outros homens o direito de tirar-lhe a vida? Será o caso de supor que, no
sacrifício que faz de uma pequena parte de sua liberdade, tenha cada indivíduo
querido arriscar a própria existência, o mais precioso de todos os bens?
Se assim fosse, como conciliar esse princípio com a máxima que
proíbe o suicídio? Ou o homem tem o direito de se matar, ou não pode ceder esse
direito a outrem nem à sociedade inteira.
A pena de morte não se apoia, assim, em nenhum direito. É uma
guerra declarada a um cidadão pela nação, que julga a destruição desse cidadão
necessária ou útil.
A morte de um cidadão só pode ser encarada como necessária por
dois motivos: nos momentos de confusão em que uma nação fica na alternativa de
recuperar ou de perder sua liberdade, em que as leis são substituídas pela
desordem, e quando um cidadão, embora privado de sua liberdade, pode ainda, por
suas relações e seu crédito, atentar contra a segurança pública, podendo sua
existência produzir uma revolução perigosa no governo estabelecido.
Mas, sob o reino tranquilo das leis, sob uma forma de governo
aprovada pela nação inteira, num Estado bem defendido no exterior e sustentado
no interior pela força e pela opinião talvez mais poderosa do que a própria
força, num país em que a autoridade é exercida pelo próprio soberano, em que as
riquezas só podem, proporcionar prazeres e não poder, não pode haver nenhuma
necessidade de tirar a vida a um cidadão, a menos que a morte seja o único
freio capaz de impedir novos crimes.
A experiência de todos os séculos prova que a pena de morte nunca
deteve celerados a fazer mal. Essa verdade se apoia no exemplo dos romanos e
nos vinte anos do reinado da imperatriz da Rússia, a benfeitora Izabel, que deu
aos chefes dos povos uma lição mais ilustre do que todas as brilhantes
conquistas que a pátria só alcança ao preço do sangue dos seus filhos.
O rigor do castigo causa menos efeito sobre o espírito humano do
que a duração da pena, porque a nossa sensibilidade é mais fácil e mais
constantemente afetada por uma impressão ligeira, mas frequente, do que por um
abalo violento, mas passageiro. Todo ser sensível está submetido ao império do
hábito; e, como é este que ensina o homem a falar, a andar, a satisfazer suas
necessidades, é também ele que grava no coração do homem as ideias de moral por
impressões repetidas.
O espetáculo atroz, mas momentâneo, da morte de um celerado é para
o crime um freio menos poderoso do que o longo e contínuo exemplo de um homem
privado de sua liberdade, tornado até certo ponto uma besta de carga e que
repara com trabalhos penosos o dano que causou à sociedade. Essa ideia terrível
assombraria mais fortemente os espíritos do que o medo da morte, que se vê
apenas um instante numa obscura distância que lhe enfraquece o horror.
A impressão produzida pela visão dos suplícios não pode resistir à
ação do tempo e das paixões. Para a maioria dos que assistem à execução de um
criminoso, o suplício deste é apenas um espetáculo; para a minoria, é um objeto
de piedade mesclado de indignação. Esses dois sentimentos ocupam a alma do
espectador, bem mais do que o terror salutar que é o fim da pena de morte. Mas,
as penas moderadas e contínuas só produzem nos espectadores o sentimento do
medo.
No primeiro caso, sucede ao espectador do suplício o mesmo que ao
espectador do drama; e, assim como o avaro retorna ao seu cofre, o homem
violento e injusto retorna às suas injustiças.
O legislador deve, pôr limites ao rigor das penas, quando o
suplício não se torna mais do que um espetáculo e parece ordenado mais para
ocupar a força do que para punir o crime.
Para que uma pena seja justa, deve ter apenas o grau de rigor
bastante para desviar os homens do crime. Não há homem que possa vacilar entre
o crime e o risco de perder para sempre a liberdade.
Assim, a escravidão perpétua, substituindo a pena de morte, tem
todo o rigor necessário para afastar do crime o espírito mais determinado.
Numa nação em que a pena de morte é empregada, para cada exemplo
que se dá, um novo crime; ao passo que a escravidão perpétua de um único
culpado põe sob os olhos do povo um exemplo que subsiste sempre, e se repete.
A escravidão perpétua é uma pena rigorosa e, tão cruel quanto a
morte. A vantagem da pena da escravidão para a sociedade é que amedronta mais
aquele que a testemunha do que quem a sofre, porque o primeiro considera a soma
de todos os momentos infelizes, ao passo que o segundo se alheia de suas penas
futuras, pelo sentimento da infelicidade presente.
A imaginação aumenta todos os males. Aquele que sofre encontra em
sua alma, endurecida pelo hábito da desgraça, consolações e recursos que as
testemunhas dos seus males não conhecem, porque julgam segundo sua
sensibilidade do momento.
Talvez venha uma época de dor e de arrependimento, mas essa época
será curta; e por um dia de sofrimento, terei gozado vários anos de liberdade e
de prazeres.
Se a religião se apresentar então ao espírito desse infeliz, não o
intimidará; diminuirá mesmo aos seus olhos o horror do último suplício,
oferecendo-lhe a esperança de um arrependimento fácil e da felicidade eterna
que é seu fruto. Mas aquele que tem diante dos olhos a vida inteira para passar
na escravidão e na dor, exposto ao desprezo dos seus concidadãos, dos quais
fora um igual, escravo dessas leis pelas quais era protegido, faz uma
comparação útil de todos os males, do êxito incerto do crime e do pouco tempo
que terá para gozar.
O exemplo sempre presente dos infelizes que ele vê vítimas da
imprudência impressiona-o muito mais do que os suplícios, que podem
endurecê-lo, mas não corrigi-lo.
A pena de morte é ainda funesta à sociedade, pelos exemplos de
crueldade que dá aos homens.
Não é absurdo que as leis, que são a expressão da vontade geral,
que detestam e punem o homicídio, ordenem um morticínio público, para desviar os
cidadãos do assassínio?
Quais são as leis mais justas e mais úteis? São as que todos
proporiam e desejariam observar, nesses momentos em que o interesse particular
se cala ou se identifica com o interesse público.
Qual é o sentimento geral sobre a pena de morte? Está traçado em
caracteres indeléveis nesses movimentos de indignação e de desprezo que nos
inspira a simples visão do carrasco, que não é contudo senão o executor
inocente da vontade pública, um cidadão honesto que contribui para o bem geral
e que defende a segurança do Estado no interior, como o soldado, a defende no
exterior.
Que se deve pensar ao ver o magistrado e os ministros da justiça
fazer
arrastar um culpado à
morte, com cerimônia, com tranquilidade, com indiferença? E, enquanto o infeliz
espera o golpe fatal, por entre convulsões e angústias, o juiz que acaba de o
condenar deixa friamente o tribunal para ir provar em paz as doçuras e os prazeres
da vida, e talvez louvar-se, com secreta complacência, pela autoridade queacaba
de exercer.
Não será o caso de dizer que essas leis são apenas a máscara da tirania,
que essas formalidades cruéis e refletidas da justiça são simplesmente um pretexto
para imolar-nos com mais confiança, como vítimas sacrificadas ao despotismo insaciável?
O assassínio, que nos aparece como um crime horrível, nós o vemos
cometer friamente e sem remorso. Não poderemos autorizar-nos com esse exemplo?
Pintavam-nos a morte violenta como uma cena terrível, e é apenas questão de um
momento. Será menos ainda para aquele que tiver coragem de ir ao encontro e de
poupar-se desse modo tudo o que ela tem de doloroso.
A história dos homens é um imenso oceano de erros, no qual se vê
sobrenadar uma ou outra verdade mal conhecida.
Ainda não chegaram os dias felizes em que a verdade eliminará o
erro e se tornará apanágio de maioria, em que o gênero humano não será
iluminado somente pelas verdades reveladas.
XVII. DO BANIMENTO E
DAS CONFISCAÇÕES
Aquele que perturba a tranquilidade pública, que não obedece às
leis, que viola as condições sob as quais os homens se sustentam e se defendem
mutuamente, esse deve ser excluído da sociedade, banido.
Parece-me que se poderiam banir aqueles que, acusados de um crime
atroz, são suspeitos de culpa com maior verossimilhança, mas sem estar plenamente
convencidos do crime.
Em casos semelhantes, seria mister que uma lei, a menos arbitrária
e a mais precisa possível, condenasse ao banimento aquele que pusesse a nação
na alternativa de fazer uma injustiça ou de temer um acusado. E que essa lei
deixasse ao banido o
direito de poder provar sua inocência e recuperar os seus direitos. Enfim, que
houvesse razões para banir um cidadão acusado pela primeira vez do que para
condenar a essa pena um estrangeiro ou um homem que já tivesse sido chamado à justiça.
Mas, deve aquele que se exclui da sociedade de que fazia parte,
ser ao mesmo tempo privado dos seus bens? Essa questão pode ser encarada sob diferentes
aspectos.
A perda dos bens é uma pena maior que a do banimento. Deve, haver
casos em que, para proporcionar a pena ao crime, se confiscarão todos os bens
do banido. Em outras circunstâncias, só será despojado de uma parte de sua
fortuna; e, para certos delitos, o banimento não será acompanhado de nenhuma
confiscação. O culpado poderá perder os seus bens, se a lei que pronuncia o
banimento declara rompidos os laços que o ligavam à sociedade; porque desde
então o cidadão está morto, resta somente o homem; e, perante a sociedade, a
morte política de um cidadão deve ter as mesmas consequências que a morte
natural.
Segundo essa máxima, é evidente que os bens do culpado deveriam reverter
para os herdeiros legítimos, e não para o príncipe; não é nisso, porém, que me apoiarei
para desaprovar as confiscações.
O uso das confiscações põe a prêmio a cabeça do infeliz sem
defesa, e
faz o inocente sofrer
os castigos reservados aos culpados. Pior ainda, as confiscações podem fazer do
homem de bem um criminoso, pois o levam ao crime, reduzindo-o à indigência e ao
desespero.
E, além disso, não há espetáculo mais hediondo que o de uma
família inteira coberta de infâmia, mergulhada nos horrores da miséria pelo
crime do seu chefe, crime que essa família, submetida à autoridade do culpado,
não poderia prevenir, mesmo que tivesse os meios para tanto.
XVIII. DA INFÂMIA
A infâmia é um sinal da improbação pública, que priva o culpado da
consideração, da confiança que a sociedade tinha nele e dessa espécie de
fraternidade que une os cidadãos de um mesmo país.
Como os efeitos da infâmia não dependem das leis, a vergonha que a
lei inflige se baseie na moral, ou na opinião pública. Se se tentasse manchar
de infâmia uma ação que a opinião não julga infame, ou a lei deixaria de ser respeitada,
ou as ideias aceitas de probidade e de moral desapareceriam.
Declarar infames ações indiferentes em si mesmas, é diminuir a
infâmia das que merecem ser designadas desse modo.
Necessário é evitar que se punam com penas corporais e dolorosas
certos delitos fundados no orgulho e que fazem dos castigos uma glória. Tal é o
fanatismo, que só pode ser reprimido pelo ridículo e pela vergonha.
Se se humilhar à vaidade dos fanáticos perante uma multidão de espectadores,
devem esperar-se felizes efeitos dessa pena, pois que a própria verdade tem
necessidade dos maiores esforços para se defender, quando é atacada pela arma
do ridículo.
As penas infamantes devem ser raras, porque o emprego demasiado
frequente do poder da opinião enfraquece a força da própria opinião. A infâmia
não deve cair tão pouco sobre um grande número de pessoas ao mesmo tempo,
porque a infâmia de um grande número não é mais, em breve, a infâmia de
ninguém.
XIX. DA PUBLICIDADE E
DA PRESTEZA DAS PENAS
Quanto mais pronta for a pena e mais de perto seguir o delito,
tanto mais justa e útil ela será. Mais justa porque poupará ao acusado os
cruéis tormentos da incerteza, tormentos
supérfluos, cujo horror aumenta para ele na razão da força de imaginação e do sentimento
de fraqueza.
A presteza do julgamento é justa porque, a perda da liberdade
sendo já uma pena, esta só deve preceder a condenação na estrita medida que a
necessidade o exige.
Se a prisão é apenas um meio de deter um cidadão até que ele seja
julgado culpado, como esse meio é aflitivo e cruel, deve-se, tanto quanto
possível, suavizar lhe o rigor e a duração. Um cidadão detido só deve ficar na
prisão o tempo necessário para a instrução do processo; e os mais antigos
detidos têm direito de ser julgados em primeiro lugar.
O acusado não deve ser encerrado senão na medida em que for
necessário para o impedir de fugir ou de ocultar as provas do crime. O processo
deve ser conduzido sem protelações.
Os efeitos do castigo que se segue ao crime devem ser em geral
impressionantes e sensíveis para os que o testemunharam; haverá, porém,
necessidade de que esse castigo seja tão cruel para quem o sofre? Quando os
homens se reuniram em sociedade, foi para só se sujeitarem aos mínimos males
possíveis; e não há país que possa negar esse princípio incontestável.
A presteza da pena é útil; e é certo que, quanto menos tempo
decorrer entre o delito e a pena, tanto mais os espíritos ficarão compenetrados
da ideia de que não há crimes sem castigo; tanto mais se habituarão a
considerar o crime como a causa da qual o castigo é o efeito necessário e
inseparável.
É, da maior importância punir prontamente um crime cometido, se se
quiser que, a pintura sedutora das vantagens de uma ação criminosa desperte
imediatamente a ideia de um castigo inevitável. Uma pena por demais retardada
torna menos estreita a união dessas duas ideias: crime e castigo. Se o suplício
de um acusado causa então alguma impressão, e somente como espetáculo, pois só
se apresenta ao espectador quando o horror do crime, que contribui para
fortificar o horror da pena, já está enfraquecido nos espíritos.
Poder-se-ia ainda estreitar mais a ligação das ideias de crime e
de castigo, dando à pena toda a conformidade possível com a natureza do delito,
a fim de que o receio de um castigo especial afaste o espírito do caminho a que
conduzia a perspectiva de um crime vantajoso. É preciso que a ideia do suplício
esteja sempre presente no coração do homem fraco e domine o sentimento que o
leva ao crime.
Entre vários povos, punem-se os crimes pouco consideráveis com a
prisão ou com a escravidão num país distante, isto é, manda-se o culpado levar
um exemplo inútil a uma sociedade que ele não ofendeu.
Como os homens não se entregam, aos maiores crimes, a maior parte
dos que assistem ao suplício de um celerado, acusado de algum crime monstruoso,
não experimentam nenhum sentimento de terror ao verem um castigo que jamais
imaginam poder merecer. Ao contrário, a punição pública dos pequenos delitos
mais comuns causar-lhe-á na alma uma impressão salutar que os afastará de
grandes crimes, desviando-os primeiro dos que o são menos.
XX. QUE O CASTIGO
DEVE SER INEVITÁVEL. – DAS GRAÇAS
Não é o rigor do suplício que previne os crimes com mais
segurança, mas a certeza do castigo.
A perspectiva de um castigo moderado, mas inevitável causará
sempre uma forte impressão mais forte do que o vago temor de um suplício
terrível, em relação ao qual se apresenta alguma esperança de impunidade.
O homem treme à ideia dos menores males, quando vê a
impossibilidade de evitá-los; ao passo que a esperança, que tantas vezes nos
proporciona todos os bens, afasta sempre a ideia dos tormentos mais cruéis, por
pouco que ela seja sustentada pelo exemplo da impunidade, que a fraqueza ou o
amor do outro tão frequentemente concede.
Às vezes, a gente se abstém de punir um delito pouco importante,
quando o ofendido perdoa. É um ato de benevolência, mas um ato contrário ao bem
público. Um particular pode bem não exigir a reparação do mal que se lhe fez;
mas, o perdão que ele concede não pode destruir a necessidade do exemplo.
O direito de punir não pertence a nenhum cidadão em particular;
pertence às leis, que são o órgão da vontade de todos. Um cidadão ofendido pode
renunciar à sua porção desse direito, mas não tem nenhum poder sobre a dos
outros.
Quando as penas se tiverem tornado menos cruéis, a demência e o
perdão serão menos necessários. Feliz a nação que não mais lhes desse o nome de
virtudes! A demência, que se tem visto em alguns soberanos substituir outras
qualidades que lhes faltavam para cumprir os deveres do trono, deveria ser
banida de uma legislação sábia na qual as penas fossem brandas e a justiça
feita com formas prontas e regulares.
Essa verdade parecerá dura apenas aos que vivem submetidos aos
abusos de uma jurisprudência criminal que concede a graça e o perdão
necessários em razão mesmo da atrocidade das penas e do absurdo das leis.
O direito de conceder graça é sem dúvida a mais bela prerrogativa
do trono; é o mais precioso atributo do poder soberano; mas, ao mesmo tempo, é
uma improbação tácita das leis existentes. O soberano que se ocupa com a
felicidade pública e que julga contribuir para ela exercendo o direito de
conceder graça, eleva-se então contra o código criminal, consagrado, mau grado
seus vícios, pelos preconceitos antigos, pelo calhamaço impostor dos
comentadores, pelo grave aparelho das velhas formalidades, enfim, pelo sufrágio
dos semissábios, sempre mais insinuantes e mais escutados do que
os verdadeiros
sábios.
Sendo a clemência virtude do legislador e não do executor das
leis, devendo manifestar-se no Código e não em julgamentos particulares, se se
deixar ver aos homens que o crime pode ser perdoado e que o castigo nem sempre
é a sua consequência necessária, nutre-se neles a esperança da impunidade;
faz-se com que aceitem os suplícios não como atos de justiça, mas como atos de
violência.
Quando o soberano concede graça a um criminoso, não será o caso de
dizer que sacrifica a segurança pública à de um particular e que, por um ato de
cega benevolência, pronuncia um decreto geral de impunidade?
XXI. DOS ASILOS
Serão justos os asilos? E será útil o uso estabelecido entre as
nações de
permutarem entre si
os criminosos?
Em toda a extensão de um Estado político, não deve haver nenhum
lugar fora da dependência das leis. A força destas deve seguir o cidadão por
toda a parte, como a sombra segue o corpo.
Há pouca diferença entre a impunidade e os asilos; e, como o
melhor meio de impedir o crime é a perspectiva de um castigo certo e
inevitável, os asilos, que representam um abrigo contra a ação das leis,
convidam mais ao crime do que as penas o evitam, do momento em que se tem a
esperança de evitá-los.
Multiplicar os asilos é formar pequenas soberanias, porque, quando
as leis não têm poder, novas potências se formam de ordem comum, estabelece-se
um espírito oposto ao do corpo inteiro da sociedade.
Vê-se, na história dos povos, que os asilos foram a fonte de
grandes revoluções nos Estados e nas opiniões humanas.
Pretenderam alguns que, cometido um crime num lugar, isto é, um
ato contrário às leis, teriam estas em toda parte o direito de punir. Será a
qualidade de súdito, nesse caso, um caráter indelével? Será o nome de súdito
pior que o de escravo? E admitir-se-á que um homem habite um país e seja
submetido às leis de outro país? Que suas ações fiquem ao mesmo tempo
subordinadas a dois soberanos e a duas legislações muitas vezes contraditórias?
Ousou-se dizer, que um crime cometido em Constantinopla podia ser
punido em Paris, porque aquele que ofende uma sociedade humana merece ter todos
os homens por inimigos e deve ser objeto da execração universal.
Um crime só deve ser punido no país onde foi cometido, porque é
somente aí, e não em outra parte, que os homens são forçados a reparar, pelo
exemplo da pena, os funestos efeitos que o exemplo do crime pode produzir.
Um celerado, cujos crimes precedentes não puderam violar as leis
de uma sociedade da qual não era membro, pode bem ser temido e expulso dessa
sociedade; mas, as leis não podem infligir-lhe outra pena, pois são feitas
somente para punir o mal que lhe é feito, e não o crime que não as ofende.
Será, útil que as nações permutem reciprocamente entre si os
criminosos?
Certamente, a persuasão de não encontrar nenhum lugar na terra em
que o crime possa ficar impune seria um meio bem eficaz de preveni-lo.
XXII. DO USO DE PÔR A
CABEÇA A PRÊMIO
Será vantajoso para a sociedade pôr a prêmio a cabeça de um
criminoso, armar cada cidadão de um punhal e fazer assim outros tantos
carrascos?
Ou o criminoso saiu do país, ou ainda está nele. No primeiro caso,
excitam-se os cidadãos a cometer um assassínio, a atingir talvez um inocente, a
merecer suplícios.
Faz-se uma injúria à nação estrangeira, espezinha-se-lhe a
autoridade, autoriza-se que se façam semelhantes usurpações entre os próprios
vizinhos.
Se o criminoso ainda
está no país cujas leis violou, o governo que põe sua cabeça a prêmio revela
fraqueza. Quando a gente tem força para defender-se não compra o socorro de
outrem.
Além disso, o uso de pôr a prêmio a cabeça de um cidadão anula
todas as ideias de moral e de virtude, tão fracas e tão abaladas no espírito
humano. De um lado, as leis punem a traição; de outro, autorizam-na. O
legislador aperta com uma das mãos os laços de sangue e de amizade, e com a
outra recompensa aquele que os quebra. Sempre em contradição consigo mesmo, ora
procura espalhar a confiança e animar os que duvidam, ora semeia a desconfiança
em todos os corações. Para prevenir um crime, faz nascer cem.
Semelhantes usos só convêm às nações fracas, cujas leis só servem
para sustentar por um momento um edifício de ruínas que todo se esboroa.
Mas, à medida que as luzes de uma nação se difundem, a boa fé e a
confiança recíproca se tornam necessárias, e a política é, enfim, constrangida
a admiti-las. Então, desmancham-se e previnem-se mais facilmente as cabalas, os
artifícios, as manobras obscuras e indiretas. Então, também, o interesse geral
sai sempre vencedor dos interesses particulares.
Os povos esclarecidos poderiam buscar lições em alguns séculos de
ignorância, nos quais a moral particular era sustentada pela moral pública. As
nações só serão felizes quando a sã moral estiver estreitamente ligada à
política.
Mas, leis que recompensam a traição, que acendem entre os cidadãos
uma guerra clandestina, que excitam suspeitas recíprocas, opor-se-ão sempre a
essa união tão necessária da política e da moral; união que daria aos homens
segurança e paz, que lhes aliviaria a miséria e que traria às nações mais,
longos intervalos de repouso e concórdia do que aqueles de que até ao presente
gozaram.
XXIII. QUE AS PENAS
DEVEM SER PROPORCIONADAS AOS DELITOS
O interesse de todos não é somente que se cometam poucos crimes,
mais ainda que os delitos mais funestos à sociedade sejam os mais raros. Os
meios que a legislação emprega para impedir os crimes devem, ser mais fortes à
medida que o delito é mais contrário ao bem público e pode tornar-se mais
comum. Deve, haver uma proporção entre os delitos e as penas.
Se o prazer e a dor são os dois grandes motores dos seres
sensíveis; se, entre os motivos que determinam os homens em todas as suas
ações, o supremo Legislador colocou como os mais poderosos as recompensas e as
penas; se dois crimes que atingem desigualmente a sociedade recebem o mesmo
castigo, o homem inclinado ao crime, não tendo que temer uma pena maior para o
crime mais monstruoso, decidir-se-á mais facilmente pelo delito que lhe seja
mais vantajosos; e a distribuição desigual das penas produzirá a contradição,
de que as leis terão de punir os crimes que tiveram feito nascer.
Se se estabelece um mesmo castigo, a pena de morte por exemplo,
para quem mata um faisão e para quem mata um homem ou falsifica um escrito
importante, em breve não se fará mais nenhuma diferença entre esses delitos.
Seria em vão que se tentaria prevenir todos os abusos que se
originam da fermentação contínua das paixões; esses abusos crescem em razão da
população e do choque dos interesses particulares, que é impossível dirigir em
linha reta para o bem público.
Lançai os olhos sobre a história, e vereis crescerem os abusos à
medida que os impérios aumentam. Como o espírito nacional se enfraquece na
mesma proporção, o pendor para o crime crescerá em razão da vantagem que cada
um descobre no abuso mesmo; e a necessidade de agravar as penas seguirá
necessariamente igual progressão.
Supondo-se a necessidade da reunião dos homens em sociedade,
mediante convenções estabelecidas pelos interesses opostos de cada particular,
achar-se-á uma progressão de crimes, dos quais o maior será aquele que tende à
destruição da própria sociedade. Os menores delitos serão as pequenas ofensas
feitas aos particulares. Entre esses dois extremos estarão compreendidos todos
os atos opostos ao bem público, desde o mais
criminoso até ao
menos passível de culpa.
Se os cálculos pudessem aplicar-se a todas as combinações obscuras
que fazem os homens agir, seria mister procurar e fixar uma progressão de penas
correspondente à progressão dos crimes. O quadro dessas duas progressões seria
a medida da liberdade ou da escravidão da humanidade ou da maldade de cada
nação.
XXIV. DA MEDIDA DOS
DELITOS
A verdadeira medida dos delitos é o dano causado à sociedade.
Eis uma dessas verdades que, só são conhecidas de um pequeno número
de pensadores em todos os países e em todos os séculos cujas leis conhecemos.
A grandeza do crime não depende da intenção de quem o comete,
porque a intenção do acusado depende das impressões causadas pelos objetos
presentes e das disposições precedentes da alma. Esses sentimentos variam em todos
os homens e no mesmo indivíduo, com a rápida sucessão das ideias, das paixões e
das circunstâncias.
Se se punisse a intenção, seria preciso ter não só um Código
particular para cada cidadão, mas uma nova lei penal para cada crime.
Muitas vezes, com a melhor das intenções, um cidadão faz à
sociedade os maiores males, ao passo que outro lhe presta grandes serviços com
a vontade de prejudicar.
Outros jurisconsultos medem a gravidade do crime pela dignidade da
pessoa ofendida, de preferência ao mal que possa causar à sociedade. Se esse
método fosse aceito, uma pequena irreverência para com o Ser supremo mereceria
uma pena bem mais severa do que o assassínio de um monarca, pois a
superioridade da natureza divina compensaria infinitamente a diferença da
ofensa.
XXV. DIVISÃO DOS
DELITOS
Há crimes que tendem à destruição da sociedade ou dos que a representam.
Outros atingem o cidadão em sua vida, nos seus bens ou em sua honra.
Outros, são atos contrários ao que a lei prescreve ou proíbe,
tendo em vista o bem público.
Todo ato não compreendido numa dessas classes não pode ser considerado
como crime, nem punido como tal, senão pelos que descobrem nisso o seu
interesse particular. O homem de bem está exposto às penas mais severas.
Cada cidadão pode fazer tudo o que não é contrário às leis, sem
temer outros inconvenientes além dos que podem resultar de sua ação em si
mesma. Esse dogma político deveria ser gravado no espírito dos povos,
proclamado pelos magistrados supremos e protegido pelas leis. Sem esse dogma
sagrado, toda sociedade legítima não pode subsistir por muito tempo, porque ele
é a justa recompensa do sacrifício que os homens fizeram de sua independência e
de sua liberdade.
Percorram-se, as leis e a história das nações, e se verão quase sempre
os nomes de vício e virtude, de bom e mau cidadão, mudarem de valor segundo o
tempo e as circunstâncias. Não são, porém, as reformas operadas no Estado ou
nos negócios públicos que causarão essa revolução das ideias; esta será a
consequência dos erros e dos interesses passageiros dos diferente legisladores.
XXVI. DOS CRIMES DE
LESA MAJESTADE
Os crimes de lesa-majestade foram postos na classe dos grandes
crimes, porque são funestos à sociedade. Mas, a tirania e a ignorância, que
confundem as palavras e as ideias mais claras, deram esse nome a uma multidão
de delitos de natureza inteiramente diversa.
Aplicaram-se as penas mais graves a faltas leves; e, nessa ocasião
como em mil outras, o homem é muitas vezes vítima de uma palavra.
Toda espécie de delito é nociva à sociedade; mas, nem todos os
delitos tendem imediatamente a destruir. É preciso julgar as ações morais por
seus efeitos positivos e ter em conta o tempo e o lugar. Só a arte das
interpretações odiosas, que é ordinariamente a ciência dos escravos, pode
confundir coisas que a verdade eterna separou por limites imutáveis.
XXVII. DOS ATENTADOS
CONTRA A SEGURANÇA DOS PARTICULARES E, PRINCIPALMENTE, DAS VIOLÊNCIAS
Depois dos crimes que atingem a sociedade, ou o soberano que a
representa, vêm os atentados contra a segurança dos particulares.
Como essa segurança é o fim de todas as sociedades humanas, não se
pode deixar de punir com as penas mais graves aquele que a atinge.
Entre esses crimes, uns são atentados contra a vida, outros contra
a honra, e outros contra os bens.
Os atentados contra a vida e a liberdade dos cidadãos estão no
número dos grandes crimes. Compreendem-se, não somente os assassínios e os
assaltos cometidos por homens do povo, mas, as violências da mesma natureza exercidas
pelos grandes e pelos magistrados: crimes tanto mais graves quanto as ações dos
homens elevados agem sobre a multidão com muito mais influência e os seus excessos
destroem no espírito dos cidadãos as ideias de justiça e de dever, para substituir
as do direito do mais forte: direito igualmente perigoso para quem dele abusa e
para quem o sofre.
Se os grandes e os ricos podem escapar a preço de dinheiro às
penas que merecem os atentados contra a segurança do fraco e do pobre, as
riquezas, que, sob a proteção das leis, são a recompensa da indústria,
tornar-se-ão alimento da tirania e das iniquidades.
Não mais existe liberdade todas as vezes que as leis permitem que
em certas circunstâncias um cidadão deixe de ser um homem para tornar-se uma
coisa que se possa pôr a prêmio. Vê-se, a astúcia dos homens poderosos ocupada completamente
com o aumento de sua força e dos seus privilégios, aproveitando todas as
combinações que a lei lhes torna favoráveis. Eis o mágico segredo que
transformou a massa dos cidadãos em bestas de carga; foi assim que os grandes
acorrentaram escravos.
É por isso que certos governos, gemem sob uma tirania oculta. É
pelos privilégios dos grandes que os usos tirânicos se fortificam insensivelmente,
depois de se terem introduzido na constituição, por vias que o legislador
negligenciou fechar.
Quais serão, as penas reservadas aos crimes dos nobres, cujos
privilégios ocupam tão grande lugar na legislação da maior parte dos povos?
As penas das pessoas
de mais alta linhagem devem ser as mesmas que as do último dos cidadãos. A igualdade
civil é anterior a todas as distinções de honras, e de riquezas. Se todos os cidadãos
não dependerem igualmente das mesmas leis, as distinções deixarão de ser legítimas.
A igualdade perante as leis não destrói as vantagens que os
príncipes julgam retirar da nobreza: apenas impede os inconvenientes das
distinções e torna as leis respeitáveis, tirando toda esperança de impunidade.
A mesma pena, aplicada contra o nobre e contra o plebeu, torna-se completamente
diversa e mais grave para o primeiro, por causa da educação que recebeu, e da
infâmia que se espalha sobre uma família ilustre.
O castigo se mede pelo dano causado à sociedade, e não pela
sensibilidade do culpado. O exemplo do crime é tanto mais funesto quanto é dado
por um cidadão de condição mais elevada.
A igualdade da pena só pode ser exterior, e não pode ser proporcionada
ao grau de sensibilidade, que é diferente em cada indivíduo.
Quanto à infâmia que cobre uma família inocente, o soberano pode
facilmente apagá-la com demonstrações públicas de benevolência. Sabe-se que
tais demonstrações de favor têm foros de razão no povo crédulo e admirador.
XXVIII. DAS INJÚRIAS
As injúrias pessoais, contrárias à honra, devem ser punidas pela
infâmia.
Há uma contradição notória entre as leis, ocupadas sobretudo com a
proteção da fortuna e da vida de cada cidadão, e as leis do que se chama a
honra, que preferem a opinião a tudo.
A palavra honra é uma daquelas sobre as quais se fizeram os mais
brilhantes raciocínios, sem ligar-se a nenhuma ideia fixa e precisa.
Apesar de sua simplicidade, discernimos com dificuldade os
diversos princípios de moral e julgamos, muitas vezes sem conhecê-los, os
sentimentos do coração humano.
Quem observar com alguma atenção a natureza e os homens, não se
admirará de todas essas coisas; pensará que, para ser feliz e tranquilo, o
homem talvez não tenha necessidade de tantas leis, nem de tão grande aparato
moral.
A ideia da honra é uma ideia complexa, formada não somente de
várias ideias simples, mas também de várias ideias complexas por si mesma.
As primeiras leis e os primeiros magistrados originaram-se da
necessidade de impedir os abusos que teria ocasionado o despotismo natural de
todo homem mais robusto do que o vizinho. Foi esse o objeto do estabelecimento
das sociedades e essa a base real ou aparente de todas as leis, mesmo as que
encerram princípios de destruição.
Mas, a aproximação dos homens e os progressos dos seus
conhecimentos fizeram nascer em seguida uma infinidade de necessidades e
ligações recíprocas entre os membros da sociedade. Nem todas essas necessidades
tinham sido previstas pela lei, e os meios atuais de cada cidadão não lhe
bastavam para satisfazê-las. Começou então a estabelecer-se o poder da opinião,
por meio da qual podem obter-se certas vantagens que as leis não podiam
proporcionar, e evitar males de que elas não podiam preservar.
É a opinião que constitui, o suplício do sábio e do medíocre. É
ela que
concede às aparências
da virtude o respeito que recusa à própria virtude.
Essa honra, que muita gente prefere à própria existência, só foi
conhecida depois que os homens se reuniram em sociedade. O sentimento que nos
liga à honra não é outra coisa senão uma volta momentânea ao estado de
natureza.onra
XXIX. DOS DUELOS
A necessidade dos sufrágios públicos, deu nascimento aos combates
singulares, que só puderam estabelecer-se na desordem das más leis. Se os
duelos não estiveram em uso na antiguidade, é que os antigos não se reuniam
armados com um ar de desconfiança, nos templos, no teatro e entre os amigos.
Talvez, sendo o duelo um espetáculo muito comum que vis escravos
davam ao povo, os homens livres tivessem receio de que os combates singulares
não bastassem para que eles fossem considerados homens honrados.
Seja como for, é em vão que se experimentou entre os modernos
impedir os duelos com pena de morte. Essas leis severas não puderam destruir um
costume fundado numa espécie de honra, mais cara aos homens do que a própria
vida. O cidadão que recusa um duelo vê-se presa do desprezo dos seus
concidadãos; é forçado a levar uma vida solitária, a renunciar aos encantos da
sociedade, ou a expor-se constantemente aos insultos e à vergonha, cujos
repetidos golpes o afetam de maneira mais cruel do que a ideia do suplício.
Por que motivo serão os duelos menos frequentes entre os homens do
povo do que entre os grandes? É somente porque o povo não traz espada, é porque
tem menos necessidade de sufrágios públicos do que os homens de condição mais
elevada, que se observam entre si com mais desconfiança e inveja.
O melhor meio de impedir o duelo é punir o agressor, aquele que
deu lugar à querela, a declarar inocente aquele que, sem procurar tirar a
espada, se viu constrangido a defender a própria honra, a opinião, que as leis
não protegem suficientemente, e mostrar aos seus concidadãos que pode respeitar
as leis, mas que não teme os homens.
XXX. DO ROUBO
Um roubo cometido sem violência só deveria ser punido com uma pena
pecuniária.
É justo que quem rouba o bem de outrem seja despojado do seu. Mas,
se o roubo é ordinariamente o crime da miséria e do desespero, se esse delito
só é cometido por essa classe de homens infortunados, a quem o direito de
propriedade só deixou a existência como único bem, as penas pecuniárias
contribuirão simplesmente para multiplicar os roubos, aumentando o número dos
indigentes, arrancando o pão a uma família inocente, para dá-lo a um rico
talvez criminoso.
A pena mais natural do roubo será, essa espécie de escravidão, que
é a única que se pode chamar justa, a escravidão temporária, que torna a
sociedade senhora absoluta da pessoa e do trabalho do culpado, para fazê-lo
expiar, por essa dependência, o dano que causou e a violação do pacto social.
Se, o roubo é acompanhado de violência, é justo ajuntar à servidão
as penas corporais.
Outros escritores mostraram, os inconvenientes que resultam do uso
de aplicar as mesmas penas contra os roubos cometidos com violência e contra
aqueles em que o
ladrão só empregou a astúcia. Fez-se ver quanto é absurdo pôr na mesma balança
uma certa soma de dinheiro e a vida de um homem. O roubo com violência e o
roubo de astúcia são delitos absolutamente diferentes; e a sã política deve admitir,
o axioma certo de que entre dois objetos heterogêneos, há uma distância
infinita.
XXXI. DO CONTRABANDO
O contrabando é um verdadeiro delito, que ofende o soberano e a
nação, mas cuja pena não deveria ser infamante, porque a opinião pública não
empresta nenhuma infâmia a essa espécie de delito.
Porque, o contrabando, que é um roubo feito ao príncipe, e por
conseguinte à nação, não acarreta a infâmia sobre aquele que o exerce? É que os
delitos que os homens não consideram nocivos aos seus interesses não afetam
bastante para excitar a indignação pública. Tal é o contrabando. Os homens,
sobre os quais as consequências de um ato só produzem impressões fracas, não
vêem o dano que o contrabando pode causar-lhes.
Chegam, às vezes, a retirar dele vantagens momentâneas. Não veem
senão o mal causado ao príncipe, e, para recusarem estima ao culpado, só têm
uma razão premente contra o ladrão, o falsário e alguns outros criminosos que
podem prejudicá-los pessoalmente.
Essa maneira de sentir é consequência do princípio incontestável de
que todo ser sensível só se interessa pelos males que conhece. O contrabando é
um delito gerado pelas próprias leis, porque, quanto mais se aumentam os
direitos, tanto maior é a vantagem do contrabando; a tentação de exercê-lo é
também tão forte quanto mais fácil é cometer essa espécie de delito, sobretudo
se os objetos proibidos são de pequeno volume, e se são interditos numa tão
grande circunferência de território que a extensão deste torne difícil
guardá-lo.
O confisco das mercadorias proibidas, e mesmo de tudo o que se
acha apreendido com objetos de contrabando, é uma pena justíssima. Para
torná-lo mais eficaz, seria preciso que os direitos fossem pouco consideráveis;
pois os homens só se arriscam na proporção do lucro que o êxito possa
proporcionar-lhes.
Será, o caso de deixar impune o culpado que não tem nada que
perder? Não. Os impostos são parte tão essencial e tão difícil numa boa
legislação, e estão de tal modo comprometidos em certas espécies de
contrabando, que tal delito merece uma pena considerável, como a prisão e mesmo
a servidão, mas uma prisão e uma servidão análogas à natureza do delito.
Por exemplo, a prisão de um contrabandista de fumo não deve ser a
do assassino ou a do ladrão; e, sem dúvida, o castigo mais conveniente ao
gênero do delito seria aplicar à utilidade do fisco a servidão e o trabalho
daquele que pretendeu fraudar-lhe os direitos.
XXXII. DAS FALÊNCIAS
O legislador que percebe o preço da boa fé nos contratos, e que
quer proteger a segurança do comércio, deve dar recurso aos credores sobre a
pessoa mesma dos seus devedores, quando estes abrem falência. Importa, não
confundir o falido fraudulento com o que é de boa fé. O primeiro deveria ser
punido como o são os moedeiros falsos, porque não é maior o crime de falsificar
o metal amoedado, que constitui a garantia dos homens entre si, do que
falsificar essas obrigações mesmas.
Mas, o falido de boa fé, o infeliz que pode provar evidentemente
aos seus juízes que a infidelidade de outrem, as perdas dos seus correspondentes,
ou enfim contratempos que a prudência humana não poderia evitar, o despojaram
dos seus bens, deve ser tratado com menos rigor. Por que motivos bárbaros
ousar-se-á mergulhá-lo nas masmorras, privá-lo do único bem que lhe resta na
miséria, a liberdade, e confundi-lo com os criminosos e forçá-lo a
arrepender-se de ter sido honesto? Vivia tranquilo, ao abrigo de sua probidade,
e contava com a proteção das leis. Se as violou, é que não estava em seu poder
conformar-se exatamente a essas leis severas, que o poder e a avidez insensível
impuseram e que o pobre aceitou seduzido pela esperança que subsiste sempre no coração
do homem e que o faz acreditar que todos os acontecimentos felizes serão para ele
e todas as desgraças para os outros.
O medo de ser ofendido predomina geralmente na alma sobre a
vontade de prejudicar; e os homens, entregando-se às suas primeiras impressões,
amam as leis cruéis, se bem que seja do seu interesse viver sob leis brandas,
pois eles próprios estão submetidos a elas.
Mas, ao falido de boa fé: não o desobriguem de sua dívida senão
depois que ele a tiver pago inteiramente; recusem-lhe o direito de subtrair-se
aos credores sem o consentimento destes, e a liberdade de levar adiante sua
indústria; forcem-no a empregar seu trabalho e seus talentos no pagamento do
que deve, proporcionalmente aos seus lucros. Mas, não se poderá fazê-lo sofrer
uma prisão injusta e inútil aos credores.
Os horrores da prisão obrigarão o falido a revelar as trapaças que
ocasionaram uma falência suspeita de fraude. É bem raro, que essa espécie de
tortura seja
necessária, se se fizer um exame rigoroso da conduta e dos negócios do acusado.
Se a fraude do falido for muito duvidosa, será melhor optar por
sua inocência. Há uma máxima geralmente certa em legislação, segundo a qual a
impunidade de um culpado tem graves inconvenientes; mas, a impunidade é pouco
perigosa quando o delito é difícil de constatar-se.
Alegar-se-á também a necessidade de proteger os interesses do
comércio, assim como o direito de propriedade, que deve ser sagrado. Mas, o
comércio e o direito de propriedade não são o fim do pacto social, são apenas
meios que podem conduzir a esse fim.
Se se submeterem todos os membros da sociedade a leis cruéis, para
preservá-los dos inconvenientes que são as consequências naturais do estado
social, isso será faltar ao fim procurando atingi-lo; e esse é o erro funesto
que perde o espírito humano em todas as ciências, mas sobretudo na política.
Poder-se-ia distinguir a fraude do delito grave, e fazer uma
diferença entre o delito grave e a pequena falta, que seria preciso separar
também da perfeita inocência.
No primeiro caso, aplicar-se-iam ao culpado as penas aplicáveis ao
crime de falsário. O segundo delito seria punido com penas menores, com a perda
da liberdade.
Deixar-se-ia ao falido inocente a escolha dos meios que desejasse
empregar para estabelecer os seus negócios; e, no caso de um delito leve,
dar-se-ia aos credores o direito de prescrever esses meios.
Mas, a distinção entre faltas graves e leves deve ser obra da lei,
que é a única imparcial; seria perigoso abandoná-la à prudência arbitrária de
um juiz.
Mas essas leis fáceis, a um tempo tão simples e tão sublimes;
essas leis que esperam o sinal do legislador para espalhar sobre as nações a
abundância e a força; essas leis que seriam motivo de reconhecimento eterno de
todas as gerações, são desconhecidas ou rejeitadas.
XXXIII. DOS DELITOS
QUE PERTURBAM A TRANQÜILIDADE PÚBLICA
A terceira espécie de delitos compreende os que perturbam o
repouso e a tranquilidade pública: as querelas e o tumulto de pessoas que se
batem na via pública.
Iluminar as cidades durante a noite à custa do público; colocar
guardas de segurança nos diversos bairros das cidades; reservar ao silêncio e à
tranquilidade sagrada dos templos, protegidos pelo governo, os discursos de
moral religiosa, e as arengas destinadas a sustentar os interesses particulares
e públicos às assembleias da nação, aos parlamentos aos lugares, enfim, onde
reside a majestade soberana: tais são as medidas próprias para prevenir a
perigosa fermentação das paixões populares; e são esses os principais objetos
que devem ocupar a
vigilância do magistrado de polícia.
Mas, se esse magistrado não age segundo leis conhecidas e
familiares a todos os cidadãos; se pode, ao contrário, fazer ao seu capricho
leis que julga serem necessárias, abre assim a porta à tirania, que ronda sem
cessar em torno das barreiras que a liberdade pública lhe fixou e que só
procura transpô-las.
Creio não haver exceção à regra geral de que os cidadãos devem
saber o que precisam fazer para serem culpados, e o que precisam evitar para
serem inocentes.
Um governo que tem necessidade de censores, ou de qualquer outra
espécie de magistrados arbitrários, prova que é mal organizado e que sua
constituição não tem força.
Num país em que o destino dos cidadãos está entregue à incerteza,
a tirania oculta imola mais vítimas do que o tirano mais cruel que age
abertamente.
XXXIV. DA OCIOSIDADE
Os governos sábios não sofrem uma espécie de ociosidade que é contrária
ao fim político do estado social: quero falar de certas pessoas ociosas e
inúteis que não dão à sociedade nem trabalho nem riquezas, que acumulam
sempre sem jamais
perder.
Austeros declamadores confundiram essa espécie de ociosidade com a
que é fruto das riquezas adquiridas pela indústria. Cabe às leis, e não à
virtude rígida de alguns censores, definir a espécie de ociosidade punível.
Não se pode encarar como ociosidade funesta em política aquela
que, gozando do fruto dos vícios ou das virtudes de alguns antepassados, dá
contudo pão e existência à pobreza industriosa, da troca dos prazeres atuais
que recebe desta e que põe o pobre na contingência de travar a guerra pacífica
que a indústria sustenta contra a opulência e que sucedeu aos combates sangrentos
e incertos da força contra a força.
Essa espécie de ociosidade pode mesmo tornar-se vantajosa, à
medida que a sociedade aumenta e que o governo deixa aos cidadãos mais
liberdade.
XXXV. DO SUICÍDIO
O suicídio é um delito que parece não poder ser submetido a
nenhuma pena propriamente dita; pois essa pena só poderia recair sobre um corpo
insensível e sem vida, ou sobre inocentes. O castigo que se aplicasse contra os
restos inanimados do culpado não poderia produzir outra impressão sobre os
espectadores senão a que estes experimentariam ao verem fustigar uma estátua.
Se a pena é aplicada à família inocente, ela é odiosa e tirânica,
porque já não há liberdade quando as penas não são puramente pessoais.
Se se obedece às leis pelo temor de um suplício doloroso, aquele
que se mata nada tem que temer, pois a morte destrói toda sensibilidade. Não é,
esse motivo que poderá deter a mão desesperada do suicida.
Mas, aquele que se mata faz menos mal à sociedade do que aquele
que renuncia para sempre à sua pátria. O primeiro deixa tudo ao seu país, ao
passo que o outro lhe rouba sua pessoa e uma parte dos seus bens.
Como a força de uma nação consiste no número dos cidadãos, aquele
que abandona o seu país para entregar-se a outro causa à sociedade o dobro do
prejuízo que lhe pode causar o suicida.
A questão reduz-se, a saber se é útil ou perigoso à sociedade
deixar a cada um dos membros que a compõem uma liberdade perpétua de afastar-se
dela.
Toda lei que não é forte por si mesma, jamais deveria ser promulgada.
Como a energia dos
nossos sentimentos é limitada, se se quiser obrigar os homens a respeitar
objetos estranhos ao bem da sociedade, eles terão menos veneração pelas leis verdadeiramente
úteis.
Uma lei que tentasse tirar aos cidadãos a liberdade de abandonar
seu país, seria uma lei inútil; porque, a menos que rochedos inacessíveis ou
mares impraticáveis separem esse país de todos os outros, como guardar todos os
pontos de sua circunferência? Como guardar os próprios guardas?
O imigrante que leva tudo o que possui não deixa nada sobre que as
leis possam fazer cair a pena com que o ameaçam. Seu delito já não pode ser
punido, desde que foi cometido; e infligir-lhe um castigo antes que ele seja
consumado, é punir a intenção e não o fato, é exercer um poder tirano sobre o
pensamento, sempre livre e sempre independente das leis humanas.
Tentar-se-á punir o fugitivo com o confisco dos bens que ele
deixa? Mas a conclusão, que não se pode impedir por pouco que se respeitem os
contratos dos cidadãos entre si, tornaria esse meio ilusório. Além disso,
semelhante lei destruiria todo comércio entre as nações; e, se punisse o
emigrado, no caso dele regressar aos país, isso significaria impedi-lo de
reparar o prejuízo que causou à sociedade e banir para sempre aquele que uma
vez se tivesse afastado da pátria.
Enfim, a proibição de sair de um país só faz aumentar, o desejo de
abandoná-lo, ao passo que desvia os estrangeiros de nele se estabelecerem. Que
se deve, pensar de um governo que não tem outro meio senão o temor, para reter
os homens em sua pátria?
A maneira mais certa de fixar os homens em sua pátria é aumentar o
bem-estar de cada cidadão. Do mesmo modo que todo governo deve empregar os maiores
esforços para fazer pender a seu favor a balança do comércio, assim também o maior
interesse do soberano e da nação é que a soma de felicidade seja aí maior do
que entre os povos vizinhos.
Os prazeres do luxo não são os principais elementos dessa
felicidade: embora impedindo as riquezas de se reunirem numa só mão, eles se tornam
um remédio necessário à desigualdade, que toma mais força à medida que a
sociedade faz mais progressos. São a base da felicidade pública, num país em
que a segurança dos bens e a liberdade das pessoas dependem exclusivamente das
leis, porque então esses prazeres favorecem a população; ao passo que se tornam
um instrumento de tirania para um povo cujos direitos não são garantidos.
Está, demonstrado que a lei que prende os cidadãos ao seu país é
inútil e injusta; e o mesmo juízo deve ser feito sobre a que pune o suicídio.
Trata-se de um crime que Deus pune após a morte do culpado, e
somente Deus pode punir depois da morte.
Não é, um crime perante os homens, porque o castigo recai sobre a
família inocente e não sobre o culpado.
Se me objetarem que o medo desse castigo pode, deter a mão do
infeliz
determinado a morrer,
responderei que quem renuncia a doçura de viver e odeia bastante a existência
terrena para preferir-lhe uma eternidade talvez infeliz, não se comoverá
decerto com a consideração remota e menos forte da vergonha que o crime atrairá
sobre sua família.
XXXVI. DE CERTOS
DELITOS DIFÍCEIS DE CONSTATAR
Cometem-se na sociedade certos delitos que são frequentes, mas que
é
difícil provar. São o
adultério, a pederastia, o infanticídio.
O adultério é um crime que, só é tão frequente porque as leis não
são fixas e porque os dois sexos são naturalmente atraídos um pelo outro. O
adultério é produzido pelo abuso de uma necessidade constante, comum a todos os
mortais, anterior à sociedade; ao passo que os outros delitos, que tendem mais
ou menos à destruição do pacto social, são antes o efeito das paixões do
momento do que das necessidades da natureza.
A fidelidade conjugal é sempre mais segura à proporção que os
casamentos são mais numerosos e mais livres.
O adultério é um delito de um instante; envolve-se de mistério;
cobre-se de um véu que as próprias leis se empenham em conservar, véu
necessário, mas de tal modo transparente que só faz aumentar os encantos do
objeto que oculta. As ocasiões são tão fáceis, as consequências tão duvidosas,
que é bem mais fácil ao legislador preveni-lo quando não foi cometido do que
reprimi-lo quando já se estabeleceu.
Regra geral: em todo delito que, por sua natureza, deve quase
sempre ficar impune, a pena é um aguilhão a mais.
A pederastia, que as leis punem com tanta severidade e contra a
qual se empregam tão facilmente essas torturas atrozes que triunfam da própria
inocência, é menos o efeito das necessidades do homem isolado e livre do que o
desvio das paixões do homem escravo que vive em sociedade. Se às vezes ela é
produzida pela sociedade dos prazeres, é bem frequentemente o efeito dessa
educação que, para tornar os homens úteis aos outros, começa por torná-los
inúteis a si mesmos, nessas casas em que uma juventude numerosa, viva, ardente,
mas separada por obstáculos intransponíveis do sexo, do qual a
natureza lhe pinta
fortemente todos os encantos, prepara para si uma velhice antecipada, consumindo
de antemão, inutilmente para a humanidade, um vigor apenas desenvolvido.
O infanticídio é ainda o resultado quase inevitável da cruel
alternativa em que se acha uma infeliz, que só cedeu por fraqueza, ou que
sucumbiu sob os esforços da violência.
De um lado a infâmia, de outro a morte de um ser incapaz de sentir
a perda da vida: como não havia de preferir esse último partido, que a rouba à
vergonha, à miséria, juntamente com o desgraçado filhinho!
O melhor meio de prevenir essa espécie de delito seria proteger
com leis eficazes a fraqueza e a infelicidade contra essa espécie de tirania,
que só se levanta contra os vícios que não se podem cobrir com o manto da
virtude.
XXXVII. DE UMA
ESPÉCIE PARTICULAR DE DELITO
Não falei de uma espécie de delito cuja punição inundou a Europa
de sangue humano.
Não descrevi esses espetáculos em que o fanatismo elevava
constantemente fogueiras, em que homens vivos serviam de alimento às chamas, em
a que multidão se comprazia em ouvir os gemidos dos infelizes, em que cidadãos corriam,
a contemplar a morte dos seus irmãos, no meio dos turbilhões de fumaça, em que
os lugares públicos ficavam cobertos de destroços palpitantes e de cinzas
humanas.
Os homens esclarecidos verão que o país onde habito, o século em
que vivo e a matéria de que trato não me permitiram examinar a natureza desse
delito. Eu me desviaria muito do meu assunto, querer provar, a necessidade de
uma inteira conformidade de opinião num Estado político; procurar demonstrar
como certas crenças religiosas, obscuras e muito acima da capacidade humana,
podem perturbar a tranquilidade pública, a menos que somente uma seja
autorizada e todas as outras proscritas.
Só falo dos crimes que pertencem ao homem natural e que violam o contrato
social; devo silenciar, sobre os pecados cuja punição mesmo temporal
deve ser determinada
segundo outras regras que não as da filosofia.
XXXVIII. DE ALGUMAS
FONTES GERAIS DE ERROS E DE INJUSTIÇAS NA LEGISLAÇÃO
As falsas ideias que os legisladores fizeram da utilidade são uma
das fontes mais fecundas de erros e injustiças.
Não teria certamente ideias justas quem desejasse tirar aos homens
o fogo e a água, porque esses dois elementos causam incêndios e inundações, e
quem só soubesse impedir o mal pela destruição.
Podem considerar-se igualmente como contrárias ao fim de utilidade
as leis que proíbem o porte de armas, pois só desarmam o cidadão pacífico, ao
passo que deixam o ferro nas mãos do celerado, bastante acostumado a violar as
convenções mais sagradas para respeitar as que são apenas arbitrárias.
Tais leis só servem para multiplicar os assassínios, entregam o
cidadão sem defesa aos golpes do celerado, que fere com mais audácia um homem
desarmado; favorecem o bandido que ataca, em detrimento do homem honesto que é
atacado.
Essas leis são o ruído das impressões que produzem certos fatos particulares;
não podem ser o resultado de combinações sábias que pesam numa mesma balança os
males e os bens; não é para prevenir os delitos, mas pelo vil sentimento do
medo, que se fazem tais leis.
Enfim, também podem chamar-se falsas ideias de utilidade as que
separam o bem geral dos interesses particulares, sacrificando as coisas às
palavras.
Há, entre o estado de sociedade e o estado de natureza, a
diferença de que o homem selvagem só faz mal a outrem quando nisso descobre
alguma vantagem para si, ao passo que o homem social é às vezes levado, por
leis viciosas, a prejudicar sem nenhum proveito.
Eis, porque as ofensas são quase sempre seguidas de ofensas novas.
A
tirania e o ódio são
sentimentos duráveis, que se sustentam e tomam novas forças à medida que se
exercem; ao passo que, em nossos corações corruptos, o amor e os sentimentos
ternos se enfraquecem e se extinguem na ociosidade.
XXXIX. DO ESPÍRITO DE
FAMÍLIA
O espírito da família é outra fonte geral de injustiças na
legislação. Se as disposições cruéis e os outros vícios das leis penais foram
aprovados pelos legisladores mais esclarecidos, nas repúblicas mais livres, é
que se considerou o Estado antes como uma sociedade de famílias do que como a
associação de um certo número de homens.
Suponha-se uma nação composta de cem mil homens, distribuídos em
vinte mil famílias de cinco pessoas cada uma, inclusive o chefe que a
representa; se a associação é feita por famílias, haveria vinte mil cidadãos e
oitenta mil escravos; se é feita por indivíduos, haveria cem mil cidadãos
livres.
No primeiro caso,
seria uma república composta de vinte mil pequenas monarquias; no segundo, tudo
respirará o espírito de liberdade, que animará os cidadãos, não somente nas
praças públicas e nas assembleias nacionais, mas ainda sob o teto doméstico,
onde residem os principais elementos de felicidade e de miséria.
Se a associação é feita por famílias, as leis e os costumes, que
são sempre o resultado dos sentimentos habituais dos membros da sociedade
política, serão obra dos chefes dessas famílias; ver-se-á em breve o espírito
monárquico introduzir-se aos poucos na própria república, e os seus efeitos só
encontrarão obstáculos na oposição dos interesses particulares, porque os
sentimentos naturais de liberdade e de igualdade já terão deixado de viver nos
corações.
O espírito de família é um espirito de minúcia limitado pelos mais
insignificantes pormenores; ao passo que o espírito público, ligado aos
princípios gerais, vê os fatos com visão segura, coordena-os nos lugares respectivos
e sabe tirar deles consequências úteis ao bem da maioria.
Nas sociedades compostas de famílias, as crianças ficam sob a
autoridade do chefe e são obrigadas a esperar que a morte lhes dê uma
existência que só depende das leis.
Nas repúblicas, em que todo homem é cidadão, a subordinação nas
famílias não é efeito da força, mas de um contrato; e os filhos, uma vez saídos
da idade em que a fraqueza e a necessidade de educação os mantêm sob a
dependência natural dos pais, tornam-se desde então membros livres da
sociedade: se ainda se submetem ao chefe da família, é apenas para participar
das vantagens que esta lhes oferece, do mesmo modo que os cidadãos se sujeitam,
sem perder a liberdade, ao chefe da grande sociedade política.
Nas repúblicas compostas de famílias, os jovens, a parte mais
considerável e mais útil da nação, ficam à discrição dos pais. Nas repúblicas
de homens livres, os únicos laços que submetem os filhos ao pai são os
sentimentos sagrados e invioláveis da natureza, que convidam os homens a
ajudar-se mutuamente em suas necessidades recíprocas e que lhes inspiram o
reconhecimento pelos benefícios recebidos.
Esses deveres são muito mais alterados pelo vício das leis, que
prescrevem uma submissão cega e obrigatória, do que pela maldade do coração
humano.
Essa oposição entre as leis fundamentais dos Estados políticos e
as leis de família, é fonte de muitas outras contradições entre a moral pública
e a moral particular, que se combatem continuamente no espírito de cada homem.
A moral particular só
inspira a submissão e o medo, ao passo que a moral pública anima a coragem e o
espírito da liberdade.
Guiado pela primeira, o homem limita seu bem-estar ao círculo
estreito de um pequeno número de pessoas que ele nem mesmo escolheu. Inspirado
pela outra, procura estender a felicidade sobre todas as classes da humanidade.
A moral particular exige que cada qual se sacrifique continuamente
a um falso ídolo que se chama o bem da família e que muitas vezes não é o bem
real de nenhum dos indivíduos que a compõem. A moral pública ensina a procurar
o bem-estar sem ferir as leis; e, se às vezes excita um cidadão a imolar-se
pela pátria, recompensa-o pelo entusiasmo que lhe inspira antes do sacrifício e
pela glória que lhe promete.
Tantas contradições fazem que os homens desdenhem de praticar a
virtude, que não podem reconhecer no meio das trevas de que a cercaram e que
lhes parece distante, porque está envolta nessa obscuridade que oculta aos
nossos olhos os objetos morais como os objetos físicos.
Quantas vezes o cidadão que reflete sobre suas ações passadas não
se terá admirado de achar-se um mau homem?
A medida que a sociedade cresce, cada um dos seus membros torna-se
uma parte menor do todo, e o amor do bem público se enfraquece na mesma
proporção, se as leis deixam de fortificá-lo. As sociedades políticas têm, como
o corpo humano, um crescimento limitado; não poderiam estender-se além de
certos limites, sem que sua economia fosse perturbada.
Parece que a grandeza de um Estado deve estar na razão inversa do
grau de atividade dos indivíduos que a compõem. Se essa atividade crescesse ao
mesmo tempo que a população, as boas leis achariam um obstáculo, para prevenir
os delitos, no próprio bem que tivessem podido fazer.
Uma república muito vasta só pode escapar ao despotismo
subdividindo-se num certo número de pequenos Estados confederados. Mas, para
formar essa união, seria preciso um ditador poderoso.
Se tal homem for ambicioso, poderá esperar uma glória imortal. Se
for filósofo, as bênçãos dos seus concidadãos o consolarão da perda de sua
autoridade, mesmo sem pedir-lhes reconhecimento.
Quando os sentimentos que nos unem à nação principiam a
enfraquecer-se, os que nos ligam aos objetos que nos cercam adquirem novas
forças. Assim, sob o despotismo, os laços da amizade são mais duráveis; e as
virtudes de família se tornam, as mais comuns, ou são as únicas que ainda se
praticam.
XL. DO ESPÍRITO DO
FISCO
Houve um tempo em que todas as penas eram pecuniárias. Os crimes
dos súditos eram para o príncipe uma espécie de patrimônio. Os atentados contra
a segurança pública eram objeto de lucro, sobre o qual se sabia especular. O
soberano e os magistrados achavam seu interesse nos delitos que deveriam
prevenir. Os julgamentos não eram, nada menos do que um processo entre o fisco
que percebia o preço do crime, e o culpado que devia pagá-lo. Fazia-se disso um
negócio civil, contencioso, como se tratasse de uma querela particular, e não
do bem público. Parecia que o fisco tinha outros direitos que exercer além da
proteção da tranquilidade pública, e o culpado outras penas que sofrer além das
que a necessidade do exemplo o exigia. O juiz, estabelecido para apurar a
verdade com ânimo imparcial, não era mais do que o advogado do fisco; e aquele
que se chamava o protetor e o ministro das leis era apenas o exator dos
dinheiros do príncipe.
Nesse sistema, quem se confessasse culpado se reconhecia, pela
própria confissão, devedor do fisco; e, como era esse o fim de todos os
processos criminais, toda a arte do juiz consistia em obter essa confissão da
maneira mais favorável aos interesses do fisco.
É ainda para esse mesmo fim fiscal que tende hoje toda a
jurisprudência criminal, os efeitos permanecem por muito tempo depois de
cessadas as causas.
O acusado que recusa confessar-se culpado, embora convencido por
provas certas, sofrerá uma pena mais leve do que se tivesse confessado; não lhe
será aplicada a tortura pelos outros crimes que poderia ter cometido,
precisamente porque não confessou o crime principal de que está convencido.
Mas, se o crime é confessado, o juiz apodera-se do corpo do culpado; dilacera-o
metodicamente; e faz dele,. por assim dizer, um fundo do qual tira todo o
proveito possível.
Uma vez reconhecida a existência do delito, a confissão do acusado
se torna prova convincente. Acredita-se tornar essa prova menos suspeita,
arrancando a confissão do crime pelos tormentos e pelo desespero; e se
estabeleceu que a confissão não basta para condenar o culpado, se esse culpado
é calmo, se fala desembaraçadamente, se não está cercado das formalidades
judiciárias e do aparato aterrador dos suplícios.
Excluem-se da instrução de um processo as investigações e as
provas
que, esclarecendo o
fato de maneira a favorecer o acusado, poderiam prejudicar as pretensões do
fisco; e, se às vezes se poupam alguns tormentos ao culpado, não é nem por
piedade para com a desgraça, nem por indulgência para com a fraqueza, mas
porque as confissões obtidas são suficientes para os direitos do fisco, esse
ídolo que já não passa de uma quimera e que a mudança das circunstâncias nos
torna inconcebível.
O juiz, quando exerce suas funções, não é mais do que o inimigo do
culpado, isto é, de um infeliz curvado ao peso das cadeias, minado pelo
sofrimento, que os tormentos esperam e que o futuro mais terrível cerca de
horror e de assombro. Não é a verdade o que ele procura; quer descobrir no
acusado um culpado; prepara-lhe armadilhas, parece que tem tudo que perder e
que teme, se não puder convencer o acusado.
O juiz tem o poder de determinar por que indícios se pode
encarcerar um cidadão. E declarar que esse cidadão é culpado, antes de poder
provar que é inocente.
Mal se conhece nos tribunais o verdadeiro processo das
informações, a investigação imparcial do fato, prescrita pela razão, seguida
nas leis militares, nos assuntos que só interessam os particulares.
XLI. DOS MEIOS DE
PREVENIR CRIMES
É melhor prevenir os crimes do que ter de puni-los; e todo
legislador sábio deve procurar antes impedir o mal do que repará-lo, pois uma
boa legislação não é senão a arte de proporcionar aos homens o maior bem-estar
possível e preservá-los de todos os sofrimentos que se lhes possam causar,
segundo o cálculo dos bens e dos males desta vida.
Mas, os meios que até hoje se empregam são insuficientes ou
contrários ao fim que se propõem. Não é possível submeter a atividade
tumultuosa de uma massa de cidadãos a uma ordem geométrica, que não apresente
nem irregularidade nem confusão.
Embora as leis da natureza sejam sempre simples e sempre
constantes, não impedem que os planetas se desviem às vezes dos movimentos
habituais. Como poderiam, as leis humanas, em meio ao choque das paixões e dos
sentimentos opostos da dor e do prazer, impedir que não haja alguma perturbação
e algum desarranjo na sociedade? É essa, a quimera dos homens limitados, quando
têm algum poder.
Se proíbem aos cidadãos uma porção de atos indiferentes, não tendo
tais atos nada de nocivo, não se previnem os crimes: ao contrário, faz-se que
surjam novos, porque se mudam arbitrariamente as ideias de vício e virtude, que
todavia se proclamam eternas e imutáveis.
Além disso, a que ficaria o homem reduzido, se fosse preciso
interdizer-lhe tudo o que pode ser para ele uma ocasião de praticar o mal?
Seria preciso começar por tirar-lhe o uso dos sentidos.
Para um motivo que leva os homens a cometer um crime, há mil
outros que os levam a ações indiferentes, que só são delitos perante as más
leis. Quanto mais se estender a esfera dos crimes, tanto mais se fará que sejam
cometidos porque se verão os delitos multiplicar-se à medida que os motivos de
delitos especificados pelas leis forem mais numerosos, sobretudo se a maioria
dessas leis não passarem de privilégios, de um pequeno número de senhores.
Quereis prevenir os crimes? Fazeis leis simples e claras; fazei-as
amar; e esteja a nação inteira pronta a armar-se para defendê-las, sem que a
minoria de que falamos se preocupe constantemente em destruí-las.
Não favoreçam elas nenhuma classe particular; protejam igualmente
cada membro da sociedade; receie-as o cidadão e trema somente diante delas. O
temor que as leis inspiram é salutar, o temor que os homens inspiram é uma
fonte funesta de crimes.
Os homens escravos são sempre mais debochados, mais covardes, mais
cruéis do que os homens livres. Estes investigam as ciências; ocupam-se com os
interesses da nação; veem os objetos sob um ponto de vista elevado, e fazem
grandes coisas. Mas, os escravos, satisfeitos com os prazeres do momento,
procuram no ruído do deboche uma distração para o aniquilamento em que se veem
mergulhados. Toda sua vida está cercada de incertezas, e, como para eles os
delitos não estão determinados, não sabem quais serão suas consequências: e
isso empresta nova força à paixão que os leva a praticá-los.
Num povo que o clima torna indolente, a incerteza das leis
entretém e aumenta a inação e a estupidez. Numa nação voluptuosa, mas ativa, as
leis incertas fazem que a atividade dos cidadãos se limite a pequenas cabalas e
intrigas, surdas, que semeiam a desconfiança. Então, o homem mais prudente é
aquele que sabe melhor dissimular e trair.
Num povo forte e corajoso, a incerteza das leis é forçada por fim
e substituir-se por uma legislação precisa; isso, porém, só acontece depois de
revoluções frequentes, que conduziram esse povo, alternativamente, da liberdade
à escravidão e da escravidão à liberdade.
Quereis prevenir os crimes? Marche a liberdade acompanhada das
luzes. Se as ciências produzem alguns males, é quando estão pouco difundidas;
mas, à medida que se estendem, as vantagens que trazem se tornam maiores.
Um impostor ousado faz-se adorar por um povo ignorante e só é
objeto de desprezo para uma nação esclarecida.
O homem instruído sabe comparar os objetos, considerá-los sob
diversos pontos de vista e modificar os próprios sentimentos pelos dos outros,
porque vê nos seus semelhantes os mesmos desejos e as mesmas aversões que agem
sobre o seu coração.
Se prodigalizardes luzes ao povo, a ignorância e a calúnia
desaparecerão diante delas, a autoridade injusta tremerá, só as leis
permanecerão inabaláveis, todo-poderosas; e o homem esclarecido amará uma
constituição cujas vantagens são evidentes, uma vez conhecidos seus
dispositivos, e que dá bases sólidas à segurança pública. Poderá ele lamentar
essa inútil partícula de liberdade de que se privou, se a comparar com a soma
de todas as outras
liberdades que os seus concidadãos lhe sacrificaram, e se pensar que, sem as
leis, estes últimos poderiam armar-se e unir-se contra ele?
Dotado de uma alma sensível, verifica-se que, sob boas leis, o
homem só perdeu a funesta liberdade de praticar o mal, forçado a bendizer o
trono e o soberano que só o ocupa para proteger.
Não é verdade que as ciências sejam nocivas à humanidade. Se às
vezes deram maus resultados, é que o mal era inevitável. Multiplicando-se os
homens sobre a superfície da terra, viram-se nascer a guerra, algumas artes
grosseiras, e as primeiras leis, que não eram senão convenções momentâneas e
que pereciam com a necessidade passageira que as produziria. Foi então que a
filosofia começou a aparecer; seus primeiros princípios foram pouco numerosos e
sabiamente escolhidos, porque a preguiça e a pouca sagacidade dos primeiros
homens os preservam de muitos erros.
Mas, multiplicadas as necessidades juntamente com a espécie
humana, foram necessárias impressões mais fortes e mais duráveis para impedir
as voltas frequentes, e cada dia mais funestas ao estado selvagem. Foram, um
grande bem para a humanidade os primeiros erros religiosos que povoaram o
universo de falsas divindades e que inventaram um mundo invisível de espíritos
encarregados de governar a terra.
Outro meio de prevenir os delitos é afastar do santuário das leis
a própria sombra da corrupção, interessando os magistrados em conservar em toda
a sua pureza o depósito que a nação lhes confia.
Quanto mais numerosos forem os tribunais, tanto menos se poderá
temer que violem as leis, porque, entre vários homens que se observam
mutuamente, a vantagem de aumentar a autoridade comum é tanto menor quanto
menor a parcela de autoridade de cada um e muito pouco considerável para
contrabalançar os perigos da empresa.
Se o soberano dá muito aparato, pompa e autoridade à magistratura;
se ao mesmo tempo fecha todo acesso aos lamentos justos ou mal fundados do
fraco, que se julga oprimido; se acostuma os súditos a temer os magistrados
mais do que as leis, aumentará sem dúvida o poder dos juízes, mas somente à
custa da segurança pública e particular.
Podem ainda prevenir-se os crimes recompensando a virtude; e
pode-se observar que as leis atuais de todas as nações guardam a esse respeito
um profundo silêncio.
Afim, o meio mais seguro, mas ao mesmo tempo mais difícil de
tornar os homem menos inclinados a praticar o mal, é aperfeiçoar a educação.
Um grande homem, que esclarece os seus semelhantes e que é por
estes perseguido, desenvolveu as máximas principais de uma educação
verdadeiramente útil. Fez ver que ela consistia bem menos na multidão confusa
dos objetos que se apresentam às crianças do que na escolha e na precisão com
as quais se lhes expõem.
Provou que é preciso substituir as cópias pelos originais nos
fenômenos morais ou físicos que o acaso ou a habilidade do mestre oferece ao
espírito do aluno.
Ensinou a conduzir as crianças à virtude, pela estrada fácil do
sentimento, a afastá-las do mal pela força invencível de necessidade e dos
inconvenientes que seguem a má ação.
Demostrou que o método incerto da autoridade imperiosa deveria ser
abandonado, pois só produz uma obediência hipócrita e passageira.
XLII. CONCLUSÃO
De tudo o que acaba de ser exposto, pode deduzir-se um teorema
geral utilíssimo, mas conforme ao uso, que é o legislador ordinário das nações:
É que, para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser essencialmente
pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias
dadas, proporcionada ao delito e determinada pela lei.
Feito por Rafaela Fernandes
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