terça-feira, 27 de outubro de 2015

Trabalho escravo: Abolido em 1888, escravidão sobrevive em novas formas de exploração no Brasil

A escravidão é uma ferida profunda da história do Brasil. Africanos escravizados e seus descendentes foram a principal mão-de-obra da Colônia e do Império. Mas apesar de ter sido abolido no século 19, o trabalho escravo ainda é uma realidade, configurado de um jeito muito mais velado em novos modelos de exploração.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) considera como escravidão todo regime de trabalho degradante que prive o trabalhador de sua liberdade. A instituição calcula que 21 milhões de pessoas sejam escravizadas no mundo hoje.
No Brasil ainda não existem estimativas confiáveis, e o governo não usa nenhum dado de projeção. O que se tem são levantamentos do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) baseado nos casos apurados pelo órgão. Nos últimos anos, inúmeros trabalhadores foram encontrados, em diversas regiões do país, em condições análogas (situações semelhantes) ao trabalho escravo.
De 1995 a 2015, com a vigência do combate ao trabalho escravo no país, quase 50 mil pessoas foram libertadas. Os trabalhadores rurais libertados são, em sua maioria, migrantes que deixaram suas casas com destino a regiões de expansão agrícola, como o Pará, Bahia, Mato Grosso e a Amazônia.  De 2003 a 2014, o Estado do Pará foi responsável por 47% dos casos registrados. Dos libertados entre 2003 e 2009, mais de 60% eram analfabetos.
A legislação do Brasil sobre o trabalho escravo é considerada uma das mais avançadas do mundo. Por aqui, a atividade é um crime contra a condição humana, com punição de 2 a 8 anos de prisão para o empregador, o responsável legal por todas as relações trabalhistas de seu negócio. Segundo o artigo 149 do Código Penal Brasileiro, o conceito de trabalho em condições análogas à escravidão é caracterizado pelos seguintes elementos:
  • Condições degradantes de trabalho, que coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador;
  • Jornada exaustiva, em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga de trabalho;
  • Trabalho forçado, situação em que a pessoa é mantida no serviço sem possibilidade de abandonar o local através de fraudes, isolamento geográfico ou ameaça e violência;
  • Servidão por dívida, situação em que a pessoa é forçada a contrair ilegalmente uma dívida que o obriga a trabalhar para pagá-la.
No Brasil, 95% das pessoas submetidas ao trabalho escravo rural com fins de exploração econômica são homens escalados para serviços de força física na pecuária, nas lavouras, na mineração e na produção de carvão vegetal. Já nos bordeis, as mulheres e crianças são a maioria.
A situação de servidão por dívida é a mais comum e acontece principalmente em fazendas que recrutam empregados em cidades pobres. Elas forçam seus trabalhadores a fazer dívidas que nunca podem ser pagas. Ao ser aliciado através de falsas promessas, o trabalhador que busca melhorar de vida recebe uma ajuda de custo para as despesas com a viagem.
Ao chegar ao local, todos os gastos do trabalhador (aluguel, comida e instrumentos de trabalho) são anotados como dívida e são descontados do salário.
Os itens são cobrados de forma abusiva, acima do preço normal. O trabalhador nunca consegue pagá-las e, desprovido de direitos trabalhistas, é intimidado (muitas vezes com armas) e forçado a trabalhar para sanar uma dívida fraudulenta. Caso se revolte ou fuja, pode sofrer agressões físicas ou psicológicas.
As condições degradantes de trabalho também são muito comuns no país. Em muitos casos, os trabalhadores vivem em alojamentos precários, superlotados e sem instalações sanitárias. A comida é escassa e sem qualidade, a horas de trabalho são exaustivas, muitas vezes sem folgas. Não usam equipamentos de proteção e quando adoecem e se machucam, não contam com assistência médica.
O trabalho escravo também acontece nas grandes cidades, principalmente em oficinas de costura e obras de construção. Em São Paulo, o setor têxtil recebe a maior parte das denúncias e as vítimas em sua maioria são imigrantes da América Latina, como os bolivianos, paraguaios e peruanos. Os estrangeiros que estão em situação irregular no país são mais vulneráveis à exploração e a terem seus direitos desrespeitados.
A cadeia de fornecimento de roupas é muito pulverizada. As empresas possuem regras “frouxas” de fiscalização de fornecedores e da origem de seus produtos. Marcas de varejo compram peças de roupas confeccionadas por oficinas de costuras terceirizadas, muitas delas clandestinas e que funcionam em fundos de casas na periferia.
O pagamento em oficinas clandestinas é feito com base na produção, e como o preço por peça pago ao costureiro é muito baixo (em alguns casos são apenas centavos), essa situação leva a jornadas excessivas e irregulares.
Em novembro de 2014, uma grande rede varejista foi flagrada pela exploração de 37 costureiros bolivianos em regime de escravidão em uma oficina de costura terceirizada de São Paulo (SP). Os trabalhadores viviam em condições degradantes em alojamentos, cumpriam jornadas exaustivas e parte deles estava submetida à servidão por dívida.
Dois meses antes, doze haitianos e dois bolivianos foram resgatados de condições análogas às de escravos em uma oficina têxtil na região central de São Paulo. Os trabalhadores produziam peças para a marca As Marias, mas nunca receberam salários e passavam fome.
O Governo no processo de combate ao crime
O trabalho escravo é fiscalizado pela polícia e pelo MTE, que através de denúncias, envia auditores fiscais a empresas e fazendas para flagrar as condições dos trabalhadores.
Para combater as práticas que evidenciam as formas contemporâneas de escravidão foi instituído o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo que prevê ações de enfrentamento, assistência às vítimas e programas de geração de emprego e renda.
Em junho de 2014 foi promulgada a PEC do Trabalho Escravo, que busca inibir o crime através de uma medida mais drástica. A emenda determina a expropriação de terras e imóveis nos quais, comprovadamente, foram identificados condições de exploração de mão de obra análoga à escravidão. O patrimônio deve ser destinado para a reforma agrária ou programas de habitação urbanos. Para que tenha efeito, a mudança na Constituição ainda precisa ser regulamentada.

O bloqueio da “Lista Suja”

Um dos mecanismos mais eficientes de fiscalização é a chamada “Lista Suja”, cadastro público de empregadores flagrados utilizando trabalho escravo no Brasil. A medida existe desde 2003 e serve como parâmetro para a governança do setor empresarial, além de ser considerada referência pela ONU.
Com base nas informações da “Lista Suja”, empresas e bancos públicos que assinaram o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo podem negar crédito, empréstimos e contratos a fazendeiros e empresários que usam trabalho análogo ao escravo.
No entanto, uma liminar judicial de 2014 do Supremo Tribunal Federal (STF) garantiu à Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) a suspensão da lista do trabalho escravo. A entidade questionou a constitucionalidade do cadastro alegando que a lista deveria ser elaborada por uma lei específica e não uma portaria interministerial.
Após a suspensão do cadastro, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Caixa Econômica Federal, que usavam o cadastro antes de fechar novos negócios, deixaram de checar casos de trabalho escravo. Bancos privados que incorporaram a lista em seu gerenciamento de risco fizeram o mesmo.
Em março de 2015, o Ministério do Trabalho e Emprego e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República publicaram nova portaria com as regras do cadastro de empregadores para atender à Lei de Acesso à Informação, Lei nº 12.527/2011. Uma nova lista foi divulgada com cerca de 400 nomes de empregadores flagrados por auditores fiscais usando trabalho análogo à escravidão e que tiveram suas infrações confirmadas pelo MTE desde dezembro de 2012.
Em outubro de 2015, a liminar de bloqueio do STF continuava em vigor.

Projeto da Câmara quer alterar conceito de trabalho escravo

Tramitam no Congresso Nacional diversas propostas que buscam alterar o conteúdo do artigo 149, que trata do conceito de trabalho escravo. O projeto de lei 3842/12, do deputado federal Moreira Mendes (PSD-RO), quer exclui condições degradantes de trabalho e jornada exaustiva como elementos definidores de trabalho semelhante ao escravo.
Esse não é o único projeto a tratar do tema. Em 2014, a proposta dos senadores Blairo Maggi (PR-MT) e Luiz Henrique da Silveira (PMDB-SC), ligados à bancada ruralista, também solicitou a exclusão desses dois pontos no Código Penal. Ela já foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça.
Há ainda um projeto que regulamenta a Emenda 81 (a antiga PEC do Trabalho Escravo), que tem como relator o senador Romero Jucá (PMDB-RR), que prevê a reavaliação de itens como o conceito de trabalho escravo e se a ação expropriação está de acordo com a legislação.
Para esses congressistas, os dois elementos podem gerar “insegurança jurídica” pela amplitude de interpretações e que o conceito de trabalho escravo se encaixaria apenas em caso de trabalho em situação de cárcere. Movimentos e organizações sociais alertam que essas medidas são um retrocesso jurídico e sua alteração pode reduzir as chances de punição jurídicas ao empregador.
Caso a emenda passe, será mais difícil o resgate de imigrantes das oficinas de costura ou cortadores de cana, que trabalham em jornadas exaustivas e em locais degradantes, mas recebem pela produção.
 

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